Pobre que vota na direita
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Vocês devem ter visto a pesquisa DataFolha que saiu sobre a eleição municipal em São Paulo, na semana passada. No final de junho teve uma parecida, da Quaest. Nada de surpreendente para quem está acompanhando a corrida. O prefeito Ricardo Nunes, do MDB, em primeiro, Guilherme Boulos do PSOL em segundo, o apresentador de tevê José Luiz Datena e o coach bolsonarista Pablo Marçal ameaçando chegar no segundo turno. Mas deixa eu chamar atenção para um ponto. Quem quer votar em Boulos? Eleitores de renda mais alta, eleitores sem religião, eleitores com maior índice de escolaridade. Quem tende a votar em Nunes? Menor renda, católicos e evangélicos, menos anos de escola.
Bem, como foi a eleição no Reino Unido? Essa mesma, no final da semana passada, em que os trabalhistas conseguiram impor aos conservadores sua maior derrota em mais de um século? Então. De cada três eleitores com ensino superior, dois votaram nos trabalhistas, um votou nos conservadores. E a turma com ensino médio ou menos? Mais para os conservadores do que para os trabalhistas, embora a diferença aí seja menor. Sabe por que é menor? Porque os eleitores com menos tempo de escola votaram em peso no Reform, o partido da extrema direita. E, claro, quanto maior a renda, mais vota nos trabalhistas.
Vamos pra França. Também este fim de semana, eleição parlamentar. Maior nível de renda, em 2022, votou pesado no Ensemble, o partido liberal do presidente Emmanuel Macron. Este ano esses eleitores migraram para o Bloco de Esquerda. Os de menor renda, ora, votaram na extrema direita. Em Marine Le Pen. O grupo de Le Pen elegeu mais deputados nos distritos onde a presença de franceses com menor nível educacional é também maior. Vocês estão percebendo um padrão aí?
Não precisamos parar. Vamos para os Estados Unidos. Os eleitores mais ricos sempre votaram no Partido Republicano. Isso começou a mudar em 2016 e está se tornando mais agudo. Quanto maior a renda, maior a probabilidade de votar nos Democratas. Quanto maior o nível educacional, idem. Vota nos democratas. Quer o padrão de voto Republicano? É o contrário.
Rico estudado, daqueles que viveram a experiência de botar a bata preta e jogar o chapéu quadrado pra cima e sair da festa com canudo na mão, esses votam na esquerda. Pobre com pouca escolaridade, na direita. E, se você acha que tem alguma coisa esquisita nesse padrão, você não está sozinho. Tem sido assim mesmo. Mas, não, isso não é normal. As coisas não eram assim.
O cientista político americano Seymour Lipset, por exemplo, definia esquerda assim: política com foco em igualdade econômica, redistribuição de riqueza, com apoio eleitoral da classe trabalhadora. E direita? Ora, políticas de livre mercado, pouca intervenção do governo na economia, proteção de propriedade, que tem por eleitorado a classe média alta e os ricos. Quem vota em que grupo estava, literalmente, na definição que o cara dava para as duas correntes.
É claro que o Lipset é de outro tempo, um cientista político que se moveu do Partido Socialista na juventude para uma posição mais centrista, que foi professor de Berkeley, Stanford e Harvard, algumas das maiores universidades americanas. Morreu em 2006 aos 84 anos. Um homem completamente do século 20. Mas a definição dele, que carregava essa ideia de que a esquerda é dos trabalhadores, dos operários, de quem tem a vida muito dura, e a direita é dos confortáveis, ela não causava surpresa. Só que mudou. Mudou radicalmente. Por quê?
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Um dos primeiros a chamar a atenção para esse fenômeno foi o economista francês Thomas Piketty, num paper publicado dois anos atrás. Ele trazia uma definição: a “Esquerda Brâmame”.
Os brâmames surgiram na Índia uns três mil anos atrás, uma das quatro grandes castas em que a sociedade se dividia. Eram sacerdotes e intelectuais. O Piketty pega essa metáfora para definir um grupo assim nas sociedades democráticas do Ocidente. Vê aí se você se reconhece.
Os brâmanes modernos têm diploma, às vezes pós-graduação. São professores, intelectuais, cientistas, mas podem estar também nas profissões liberais. Direito, Medicina, áreas de tecnologia. Sim, tendem a ganhar melhor do que a maioria da sociedade, e ainda assim são favoráveis a impostos mais altos para os ricos, políticas de redistribuição, programas sociais. Muito preocupados com desigualdade econômica. Liberais em questões sociais. Direitos LGBTQIA+, igualdade de gênero, multiculturalismo e sustentabilidade ambiental. Quer dizer: direitos civis e políticas sociais progressistas. E têm muita influência na cultura. Vozes como as suas ecoam mais do que outras nas páginas da imprensa, no que sai da academia, nas artes.
O Piketty não compara este grupo a uma casta indiana à toa, não, tá? Esse grupo, super-progressista, representa a elite intelectual da sociedade mas está também alienado. Com o passar do tempo, foi perdendo o contato com o que pensa boa parte do povo. É uma esquerda que se descolou do povo.
A questão aqui é a seguinte: tudo mudou. Pra começar, acabou a Era Industrial. Estamos num tempo em que o que faz dinheiro é educação. Quanto maior seu nível educacional, em média, maior sua renda. Não tem jeito. Trabalho de operário, que pagava um salário de classe média, quase não existe mais. As coisas foram automatizadas. Não é só isso: a natureza dos casamentos mudou. Casamento era para sempre, as famílias eram grandes. Não mais. Mulheres estão mais independentes e as pessoas têm menos filhos. Gente com nível de educação mais alto tem com mais frequência se desligado de uma vida religiosa.
Eu estava entrevistando esses dias um grande cientista político e ele estava contando de como a coisa funcionava, lá na década de 1950, no interior de Minas. Olha só, chegava uma fábrica na cidadezinha, vinham logo os sindicatos e aí o PTB, o partido de esquerda, crescia e começava a ganhar eleições. Era batata. Era industrial.
As maiores preocupações de esquerda não são mais econômicas. São socioculturais. É claro. Não é mais industrial. Estar mais tranquilo em termos de grana e ter uma educação formal de alto nível faz com que esse eleitor comece a votar de forma menos prática, menos pensando em si e mais nos outros. Não é só, veja, por bondade. É também para cultivar uma imagem bacana a respeito de si mesmo, nem que seja pra si. Vivemos um tempo de sinalização de virtudes nas redes. Imigração, na Europa e Estados Unidos, ambientalismo, direitos LGBTQIA+, direitos das mulheres, mesmo movimento negro. O discurso cada vez mais identitarista. E isso não tem eco com o eleitor que está ralando na vida. Esse eleitor segue preocupado com sobreviver.
E isso é outra coisa curiosa. Está aumentando, principalmente entre jovens, o voto feminino na esquerda e o masculino, na direita.
Mas, olha, não foi tudo que mudou na demografia eleitoral. O voto nas zonas rurais continua mais à direita e, nas zonas urbanas, mais à esquerda. Em todo o mundo, sindicalistas e funcionários públicos sequem tendendo a votar na esquerda, enquanto que empresários, empreendedores, pessoas mais religiosas, tendem a votar mais na direita. Não foi tudo que mudou.
O que mudou demais foi como o mundo funciona. E, aí, quem vive com mais insegurança, quem está fora do novo modelo econômico que exige, para pagar bons salários, um nível educacional alto, essas pessoas entendem muito bem que as mudanças não trazem nenhum benefício para elas. Aí começam a rejeitar tudo quanto é mudança que aparece. Querem o mundo como ele era. Claro. Aquele mundo industrial tinha mais vantagens. Era mais tranquilo de se viver.
Então qual é a fórmula para a esquerda? Bem, a França Insubmissa, o partido de esquerda radical que terminou sendo o que mais elegeu deputados por lá, fala de preocupações econômicas e rejeita o identitarismo. Curiosamente, o Partido Trabalhista renovado é igual sendo diferente. Não é radical, muito pelo contrário. Mas bateu nas mesmas teclas. Segurança econômica e rejeição ao identitarismo. São diferentes, tá? Os franceses querem uma economia com muita intervenção do Estado, os ingleses estão falando de uma conduta muito responsável da economia para poder oferecer um Estado de Bem-Estar Social mais sólido. O ponto é que entenderam, ambos, maneiras diferentes de atingir um público que está mais difícil de ser atendido.
As pautas sociais são um desafio. O problema de desigualdade de direitos existe. Mas, olha, muitos dos eleitores mais pobres não estão vendo vantagem, não, no que a esquerda está oferecendo. Pelo contrário. Agora, claro, ninguém é obrigado a mudar o discurso, a se reenquadrar para o que o eleitor quer ouvir. Isso é sempre uma escolha.
É uma escolha entre ganhar e perder eleições. A extrema direita aprendeu direitinho o que tem de falar. E segue falando. Forte. Está de pé. Atenta ao que o eleitor está dizendo.
Tem outra opção, claro. Ficar fazendo piada de pobre que vota na direita. Achando que o problema é com o pobre.