Vitória dos trabalhistas pode esconder crescimento da extrema-direita no Reino Unido
O Reino Unido foi às urnas hoje para escolher os 650 deputados da Câmara dos Comuns, a câmara baixa do Parlamento britânico. Mestre e doutor em política e relações internacionais pela Universidade de Liverpool, o professor da Universidade de São Paulo (USP) Kai Enno Lehmann analisa a vitória certa do Partido Trabalhista nas eleições – que terão, segundo as pesquisas, uma derrota histórica dos conservadores após 14 anos no poder. Mas talvez a ascensão dos trabalhistas no Reino Unido esconda o crescimento da extrema-direita, pois o partido Reforma (Reform UK, antigo Brexit) tende a alcançar até 15% dos votos, segundo Lehmann, e só não terá número proporcional de cadeiras no Parlamento por causa das regras do sistema eleitoral britânico. (Meio)
Quem é essa esquerda que chega ao poder no Reino Unido?
Keir Starmer é uma pessoa que poderia se encaixar em vários grupos do Partido Trabalhista e da sociedade britânica. Por um lado, ele nunca cansa de dizer que a raíz de sua família é de trabalhadores braçais. Ele é um torcedor verdadeiro de futebol. Um homem bastante tradicional, do ponto de vista histórico dos trabalhistas. Por outro lado, ele foi o procurador geral do Reino Unido por um tempo. Mora em uma parte muito liberal de Londres, na zona norte da cidade. Os conservadores nunca se cansaram de dizer que ele é parte dessa elite da zona norte de Londres, super liberal. Mas é verdade que a base tradicional do Partido Trabalhista, que votou no Corbyn [Jeremy Corbyn, que perdeu a eleição de 2017 para a conservadora Theresa May], mas depois votou no Johnson [o conservador Boris Johnson, que venceu a eleição de 2019 em que Corbyn foi novamente derrotado], abandonando o Partido Trabalhista, também suspeita dele e não sabe 100% quem ele é e o que ele vai fazer. Hoje, esses eleitores ficaram em casa ou votaram nele, porque não vão votar no Partido Conservador. Talvez votem no Reforma, antigo Brexit.
Qual é o programa dos trabalhistas hoje?
O que chama atenção – e se eu fosse um dos estrategistas do partido, estaria preocupado – é que eles estão tentando, por um lado, dizer que não serão radicais, que os eleitores podem confiar nos trabalhistas, que não irão desfazer o Brexit, que não irão se juntar ao mercado único europeu, que vão seguir uma linha dura na imigração – embora não seja uma linha que inclua deportações para Ruanda. Eles estão sinalizando aos apoiadores que abandonaram o partido em 2019 que estão alinhados com as preocupações desses eleitores: Brexit e imigração. Por outro lado, dizem que haverá mudanças, como diz o slogan da campanha. Mas estão tentando desenvolver uma ideia de que essas mudanças, para recuperar o serviço de saúde, os serviços sociais e públicos de uma maneira geral, para acelerar o crescimento econômico, vão ocorrer dentro do modelo existente. Parece que está funcionando em termos eleitorais, mas não sei se irá funcionar em termos práticos quando os trabalhistas tiverem que implantar suas políticas.
O senhor acha que essas eleições indicam o que pode acontecer em outros lugares do mundo com o campo progressista?
Tenho minhas dúvidas por alguns motivos. Existem particularidades no Reino Unido que não existem em outras partes. Uma é o fato de que os conservadores estão no poder há 14 anos, e é natural que haja um movimento do eleitorado contra um partido há tanto tempo no poder. Além disso, temos a sensação que me parece bastante profunda no Reino Unido de que nada no país está funcionando bem. Isso tem a ver muitas vezes com Brexit, embora nenhum dos dois partidos queira falar sobre o assunto. Essa longevidade no poder é um fator super importante para explicar porque todas as pesquisas indicam que teremos uma derrota histórica do Partido Conservador. Não sei se é uma indicação do que vai acontecer no mundo. Vamos ver as eleições na França domingo. Talvez o Reino Unido seja a exceção que confirma a regra, e a regra é que a direita e a extrema-direita estão em ascensão, e não a centro-esquerda. É provável que a gente veja isso na França no domingo, também nas eleições austríacas, e ainda teremos duas eleições regionais na Alemanha onde essa tendência do crescimento da extrema-direita deve se confirmar. Isso sem falar, evidentemente, na eleição dos Estados Unidos, onde me parece, ao menos por enquanto, que Donald Trump irá ganhar. Então talvez o Reino Unido seja o ponto fora da curva nessa tendência.
Como o senhor analisa o possível desempenho do partido Reforma nestas eleições?
É uma coisa para se observar hoje. O partido Reforma, que é o sucessor do partido Brexit, deve se dar bem nas urnas do Reino Unido – e só não vai ganhar muitas cadeiras no Parlamento por causa das particularidades do sistema eleitoral britânico. Eu acho que é bem possível que esse partido ganhe uns 15% dos votos, o que indicaria a mesma tendência no Reino Unido que está sendo escondido por essas particularidades do sistema britânico, que pune partidos que tenham apoio pulverizado pelo país, e não concentrado em áreas geográficas específicas. É bem possível que eles ganhem entre 12% e 15%, o que é uma mudança significativa para o sistema britânico. O impacto de Nigel Farage, líder do Reforma e anteriormente líder do Brexit, tem sido influenciar os conservadores. O Partido Conservador tem sido um partido de extrema direita. A agenda e a pauta de Farage têm sido incorporadas quase completamente pelo Partido Conservador. Mesmo sem ganhar muitas cadeiras no Parlamento, o impacto desse partido sobre Brexit, sobre políticas públicas em relação à imigração, ao estado de bem-estar social, tem sido enorme apesar da falta de deputados no Parlamento.