Trump, Le Pen e o risco do Brasil
Se você é brasileiro, devia estar preocupado com a política do mundo. Muito preocupado.
Neste momento, tudo indica que o Partido Democrata não fará nada e Joe Biden permanecerá candidato à presidência americana. E isto quer dizer que subiram um pouco mais as chances de Donald Trump se eleger novamente. Enquanto isso, as eleições francesas ainda não encerraram, mas tudo indica que o premiê nos próximos três anos será do partido de extrema direita.
Sabe esse arremedo desastrado de golpe militar que houve na Bolívia? Imagina se o presidente dos Estados Unidos fosse simpático à ideia. Imagina se a União Europeia ficasse dividida a respeito de golpes militares na América Latina. Essas coisas voltam. Aliás, mais do que isso. Essas coisas estão voltando. Quatro generais quatro estrelas e um comandante da Marinha planejaram um golpe militar no Brasil. Não aconteceu, mas não aconteceu por quê? Não aconteceu porque, no Comando do Exército, não havia generais o suficiente convencidos de que poderiam dar um golpe. Se um golpe dá errado, eles são presos. Se dá certo, eles pegam o poder por vinte anos.
Teve o planejamento no Brasil. Teve uma tentativa na Bolívia. Tem um clima no ar, percebe? Se Trump volta ao poder, o jogo de estímulos muda. Essas loucuras que pareciam distantes se tornam razoáveis. Aí um país vizinho nosso tenta um golpe, tem aquelas horas, aqueles dias de confusão, mas os americanos não condenam, a União Europeia não solta nota, a China, imagina, a China não tem mesmo nada contra ditaduras. E assim as coisas vão. Democracias um dia acabam.
Mas, pra entender esse jogo, é bom botar algumas sutileza nele. Um dos problemas de usarmos esses termos “extrema direita” e “fascista” o tempo todo é que as coisas vão parecendo igual e não necessariamente são. Outro ponto importante: ficamos tanto tempo martelando no modelo Como as Democracias Morrem, do Steven Levitsky, que ficou parecendo que só tem aquele jeito. Não tem. Desde que o livro foi lançado pela primeira vez, a África andou sofrendo uns golpes militares bem tradicionais e tivemos dois ensaios aqui na América do Sul. Mas não é só isso. Giorgia Meloni, na Itália, é uma extrema direita que não está seguindo o modelo de fazer dissolver a democracia. Ela não é um Bolsonaro, não é um Trump de saias. E tudo indica que, na França, o grupo de Marine Le Pen vai ser tipo isso.
Quer dizer: não quer esvaziar o poder do Congresso, não quer reescrever a Constituição, não procura mudar a composição da Corte. O objetivo não é implantar uma ditadura. O objetivo é aos poucos higienizar a ideia de uma direita xenófoba, cortar espaços de minorias, é dissolver preceitos fundamentais do que entendemos por democracia liberal que é a ideia de igualdade para todos perante a lei, de oportunidades iguais construídas num país erguido para que todos possam ser o seu melhor. Querem mudar isso sem parecer estar mudando. É implantar um país onde uns sejam mais do que os outros, mas sem precisar mudar a estrutura legal. Você muda a cultura sem precisar dissolver o sistema. Um dos truques é não gritar como Trump ou Bolsonaro.
Aliás, no primeiro debate presidencial deste ano, Trump não gritou uma única vez e mentiu o tempo todo. Essa é uma história que começa com a candidatura Joe Biden.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Não há qualquer indício de que Joe Biden esteja senil. Ele pensa com profundidade, pensa com clareza. Ele só está precisando de mais tempo para se concentrar. Para entender o que está ocorrendo com Biden, que tem 81 anos, se eleito tomará posse com 82 e deixará o segundo mandato com 86, é preciso começar com uma palavra: Biden sofre de disfemia. Gagueira.
A ciência não compreende bem o que causa disfemia, mas é um distúrbio neurológico ligado ao controle motor fino. É como se houvesse interrupções entre o fluxo de pensamento e o ato de falar. Isso leva a pausas em lugares inusitados, repetição de sílabas, às vezes de palavras ou frases inteiras. Há jeitos de treinar para resolver, e Biden se dedicou muito a melhorar. Tanto que fez uma longa carreira de sucesso como político. Mas a idade pesa.
Quem viu o debate presidencial percebeu a dificuldade que ele está tendo entre pensar e se expressar. Troca palavras, troca conceitos. Nos momentos em que não está falando, parece ter ausências. Olha fixo para um canto no nada, entreabre a boca e fica lá. Não parece estar atento, talvez esteja. Para os americanos, vê-lo assim, a cru, foi um choque. Seus assessores dizem que isso é coisa de dias, aí apontam para o excelente discurso de Estado da União que fez há alguns meses, ou mesmo para o comício que comandou no dia seguinte ao debate. Biden falava com clareza, com energia. O que eles não dizem é o seguinte: Biden estava como eu estou aqui. Com um teleprompter na minha frente. Eu estou falando enquanto estou lendo. Ele estava falando enquanto lia. O ato de ler o texto que falamos, depois de bem treinados, facilita imensamente o processo de comunicar. Não é preciso gastar energia enfileirando as palavras e o raciocínio, essa energia já foi gasta antes, no ato de escrever. Essa energia pode ser depositada no ato de exprimir. De expressão. Quando precisa falar de improviso, Biden dá claras mostras de o quanto o esforço pesa para ele.
Isso compromete sua capacidade de fazer uma campanha eleitoral. Olha, compromete também sua capacidade de presidir os Estados Unidos. Os presidentes que escreveram autobiografias pós governo relatam um trabalho que exige acordar todo dia quatro, cinco da manhã, ler uma quantidade abissal de textos bem cedo para se preparar para o dia. Toda decisão é uma decisão crucial. Toda. Se uma decisão chega para o presidente tomar, isso já é porque as pessoas com os cargos mais altos em todo o governo não puderam tomar. Os ministros não puderam. Ou, pior, os ministros discordam. E se dois ministros discordam de qual o melhor caminho por seguir, aí é porque a decisão é difícil mesmo. E isso é toda santa reunião do dia.
Como opera, num trabalho assim, um senhor que tem dificuldade de raciocinar e se expressar com fluidez? As reuniões ficam mais longas, mais complexas, o diálogo perde a dinâmica. Outro trabalho essencial dum presidente, nisso o jornalista Ezra Klein vem sendo enfático, é o de se comunicar. Justamente de explicar, para a sociedade, por que um caminho é melhor do que o outro. E, olha, fazer isso e convencer. Os Estados Unidos são uma democracia. É preciso convencer as pessoas, senão os parlamentos não funcionam. E convencer as pessoas num cenário particularmente difícil, que é o da polarização afetiva em que vivemos. Biden perdeu a capacidade de se expressar com clareza e dinamismo e isso afeta diretamente sua capacidade de ser presidente dos Estados Unidos. De qualquer país. Biden seria um candidato que os democratas jamais apresentariam, não fosse o adversário Donald Trump. Contra um candidato republicano normal, Biden seria dilacerado. Contra Trump, o que acontece é que as chances de Trump aumentam.
Nos últimos dois anos, os americanos têm visto pouco Biden falando. Quando fala é em vídeos profissionais ou discursos. Muito raras as entrevistas, quase sempre curtas. Então vê-lo daquele jeito, na noite de quinta-feira, foi um choque para muita gente. Existem algumas razões para, perante o pânico geral da nação, o Partido Democrata estar resistindo tanto a mudar o candidato. O primeiro é que não tem nada de trivial chegar para o presidente da República e dizer: você tem de sair. Mas, veja, os republicanos fizeram isso com Richard Nixon.
A segunda razão é que a candidata natural seria Kamala Harris, a vice-presidente. As pesquisas dela são muito ruins. Seria um caminho difícil, uma campanha difícil. O jeito seria passar por cima dela e escolher outra pessoa. Tudo certo, mas quais são os eleitorados mais fiéis do partido Democrata? Mulheres e negros. Atropelar uma mulher negra vai deixar gente demais insatisfeita. Dos eleitorados mais fiéis. Não dá pra fazer. E tem uma terceira razão. Os nomes de maior força do partido, que poderiam fazer essa pressão, senadores, governadores, são justamente aqueles que querem ser candidatos daqui a quatro anos ou, se Biden deixar a sala, agora mesmo. Quem quer puxar para si a pecha de traidor? Ninguém quer. Ninguém vai. Deu nó.
Perante este nó, os americanos terão de escolher votar em um homem que foi muito decente em toda sua história, muito decente mesmo, que tem um dos currículos mais dignos que se pode apresentar em quase cinquenta anos de vida pública, décadas no Senado, um dos estadistas mais experientes do mundo… Mas que obviamente não tem mais o necessário para se desempenhar bem nesta função que é de presidir a maior economia do planeta. Ou ele, ou Trump, que ameaça diretamente a democracia. Mas que se comportou no último debate. Tem uma terceira alternativa, claro. Ficar em casa desanimado, esquecer política. Porque as pessoas que vão decidir a eleição não são as ultrapolitizadas que votam sempre. São as que votam às vezes.
As chances de vitória de Trump são grandes, tá? O Congresso brasileiro, na próxima eleição, vai ser tão reacionário quanto o atual. E se o Brasil elege um bolsonarista, não um candidato de direita normal, mas um bolsonarista que não grita, não chama militares, que quer só destruir os espaços de quem não segue uma cultura monolítica, masculinizada e que segue os preceitos de um cristianismo visto por uma lente particularmente ortodoxa?
Ou, e se pior, vem um bolsonarista que se porta bem e quer um golpe militar. Os dois modelos existem. Com Trump e Le Pen lá. Pra garantir a democracia brasileira, os trabalhos fundamentais são dois. É preciso ainda neste mandato de Lula que os responsáveis pela tentativa de golpe militar, os generais que planejaram, sejam devidamente condenados e presos. É preciso mostrar que existem consequências para quem tenta romper a democracia. E, dois, é preciso consolidar os democratas em torno de um mesmo projeto de país. Não de um presidente. De um mesmo projeto de país. Se a esquerda achar que vai dominar este projeto, não consolida a frente ampla. Precisa ter os valores de todos representados neste projeto. Precisa ser realmente um projeto que defenda democracias, inclusive na política externa.
E a gente vai precisar conversar muito sobre isso nos próximos meses e anos.