Porte de maconha: STF julgou recuado perante Congresso conservador

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Um avanço tímido, recuado, quase contraditório. Juristas que observam como o Brasil e outros países tratam a questão das drogas avaliam dessa forma o resultado do julgamento feito pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que descriminalizou o porte de maconha, diferenciando o usuário do traficante e estipulando, mesmo que provisoriamente, a quantidade de 40 gramas ou 6 plantas fêmeas como o máximo que uma pessoa pode portar. Esse volume valerá até que o Congresso Nacional consiga votar uma lei estipulando uma quantidade máxima.

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A decisão do STF se deu sobre um vácuo de legislação, uma “anomia”, argumento  bastante usado pelos ministros em seus votos para justificar o fato de que o caso precisava ser decidido pela mais alta corte do país. O que provocou o julgamento foi um recurso extraórdinário impetrado há quase 9 anos que trata do caso de um preso, flagrado com 3 gramas de maconha no interior da sua cela e que foi submetido a trabalhos para comunidades e outras penalidades.

O advogado Cristiano Avila Maronna, diretor da Plataforma Justa, avalia que, embora o Supremo tenha acertado no diagnóstico de que a legislação tem de mudar e dar conta de preencher esse vácuo, a Corte não foi capaz de apresentar uma solução eficiente. Um dos grandes indicativos dessa ineficácia, segundo Maronna, está no abismo que separa o voto do ministro Gilmar Mendes, relator do caso, proferido em 2015, e o próprio resultado a que se chegou na última quarta-feira. “Esse julgamento demorou demais”, observa, em conversa com o Meio. “Durante esse período de quase nove anos, a pressão contrária à descriminalização só aumentou, ao ponto de o Congresso ter apresentado uma proposta de emenda à Constituição (PEC) no sentido oposto ao que o STF direcionava em seus votos. Foi uma decisão tímida, modesta, recuada e que vai mudar muito pouco”, considerou Maronna, autor do livro Lei de Drogas Interpretada na Perspectiva da Liberdade.

O voto que inaugurou os debates era bem mais amplo. Indicava que o consumo de qualquer substância é uma decisão privada e eventual dano causado recaia, sobretudo, na saúde do próprio usuário. Já o resultado do julgamento refere-se somente à maconha e ainda não garante vários outros aspectos da vida privada. “Esse simples fato de tratar só da maconha exclui os indivíduos mais vulneráveis, justamente aqueles que deveriam se beneficiar de uma medida como essa”, ressalta. Como cocaína, crack e outras drogas continuam criminalizadas, a meu ver, o impacto positivo que a lei poderia produzir foi reduzido”.

Contradição

O porte da maconha, de acordo com a decisão, passou a não configurar crime e, sim, ilícito administrativo. No entanto, o STF manteve essa conduta na ilegalidade quando se trata do procedimento a ser aplicado quando as pessoas são flagradas com maconha. “Provavelmente o que vai acontecer é manter os procedimentos previstos na Lei de Drogas”, disse Maronna. “A polícia militar vai continuar abordando pessoas e encaminhando para a delegacia, a autoridade policial vai continuar lavrando auto de prisão em flagrante, em caso de tráfico, ou termo circunstanciado, quando se tratar de uso pessoal e, na prática, vai mudar muito pouco”, avalia Maronna.

Para Luciana Boiteux, professora de direito penal e advogada que atua como amicus curiae no julgamento representando a Associação Brasileira de Estudos Sociais sobre o Uso de Psicoativos, a maior complexidade da decisão figura exatamente na definição do rito. “Talvez seja a maior contradição que está colocada, porque trata-se de uma interpretação que não considera mais como crime no sentido simbólico mas, ao mesmo tempo, mantém uma proibição adminitrativa”, destacou em entrevista ao Meio. Como foi uma decisão jurisprudencial do STF, ela precisa ser regulamentada e isso, segundo o próprio presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, será feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que definirá o rito processual, desde a abordagem policial até a defiinição de quais as espécies de juizados deverão tratar o usuário de drogas. Mas o limite dessa regulamentação também é restrito diante do que ficou decidido. ” STF decidiu é que vai manter o procedimento já existente. Ou seja, continua envolvendo polícia e não deveria ser assim”, ressalta Boiteux.

Eficácia

Observando a decisão do STF, até os limite estipulados de 40 gramas ou 6 plantas fêmeas por pessoa podem cair no momento da abordagem caso haja uma interpretação da polícia sobre as circunstâncias em que a apreensão foi feita. E é nesse ponto que a decisão pode se tornar inóqua no sentido de tentar unificar o tratamento para pessoas de classes mais baixas ou mais abastadas. Todas as circunstâncias narradas como condicionantes se baseiam em testemunhos policiais e nas provas a eles ancoradas. “Hoje a maior parte das provas contra pessoas condenadas por tráfico se baseiam nos policiais que atenderam a ocorrência. O que é um absurdo. Para condenar alguém por tráfico, deveria haver uma prova robusta”, destacou.

Durante o julgamento, houve ainda alguns ministros que reclamaram da omissão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na regulação de derivados da maconha, por exemplo. Além disso, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), acusou o Supremo de invadir com o julgamento, atribuições tanto do Congresso, quanto da Anvisa. Isso porque, o THC, princípio alucinógeno na maconha, encontra-se na lista de substâncias proibidas do Ministério da Saúde e esse rol consta em uma portaria que é atualizada a cada dois ou três meses pela Anvisa. Ao Meio, a assessoria da Anvisa disse que não iria se pronunciar sobre as citações, tanto no STF, quanto por parte de Pacheco.

Testando limites

Há uma clara visão de que o Supremo, diante de um Congresso mais conservador, foi até onde poderia ir. O próprio Barroso reconheceu as limitações dadas pelo perfil do Congresso e da sociedade nessa questão e, mesmo tentando dar ênfase ao fato de que não houve uma “legalização” da maconha no Brasil, deixou transparecer que defende a adoção de uma legislação mais aberta. “Tem gente que acha que a gente fez muito e tem gente que acha que a gente fez pouco e deveria ter feito mais. É compreensível. O tratamento das drogas é um problema em todo o mundo e não existe uma solução juridicamente fácil, nem moralmente barata. São escolhas difíceis que precisam ser feitas”, disse.

Apesar da pouca mudança de cenário, Boiteux acredita que algum efeito positivo vai ter advindo da decisão, apesar de considerar que o resultado ficou aquém do que ela esperava. Havia posssibidades reais de avanço das políticas de drogas e, na minha avaliação, pouco mudou. Qualquer outro avanço pode ser cavado a partir desse pequeno avanço, atuando agora a partir do parlamento. É hora de observar e ativar o diálogo”, enfatizou.

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