Os reacionários erraram no aborto

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O projeto de lei que manda prender quem faz aborto após a vigésima segunda semana não é um projeto de lei contra mulheres. Eu sei que parece, mas não é.

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É um projeto de lei contra meninas.

É muito importante deixar isso claro porque a gente precisa saber, na prática, do que estamos falando. O Brasil já tem a legislação mais restritiva da América Latina sobre aborto. Nós estamos no país mais conservador da região. Não era assim, mas ficou. É o que somos, é o caminho que a sociedade brasileira tomou. Mas o fato é esse. Já temos a legislação mais restritiva de aborto da região. O procedimento só é permitido em três casos. Quando a gravidez representa risco de vida para a mulher. Ou seja, se ela for até o final da gestação, há uma possibilidade alta de morrer. De perder sua vida. O segundo caso é o de anencefalia. Quer dizer, se a criança nascer, ela morre.
Aí há o terceiro caso. O de estupro.

Vamos falar às claras aqui. Uma mulher estuprada sabe que foi estuprada. Ela sabe o que aconteceu. Ela sabe que pode vir a engravidar e, se engravida, ela compreende que está grávida bastante cedo. Se sua opção é por um aborto legal e seguro, ela sabe exatamente como proceder, que precisa ir à delegacia, prestar queixa, fazer exame de corpo delito, todo aquele processo humilhante para estar de acordo com a lei. Aí requerer ao juiz a autorização. A coisa se resolve rápido. Dói, a dor da violência sexual se arrasta, parece eterna, mas vai. Tudo acontece em geral bastante cedo no processo.

O problema está com as meninas. São elas que não necessariamente entendem que houve o estupro. Que às vezes não têm vocabulário para explicar para os pais o que aconteceu. Que têm vergonha e se escondem. Que não necessariamente compreendem o que está acontecendo com seus corpos. Que muitas vezes vivem em casa com o estuprador. É no caso do estupro de meninas, meninas mesmo, com corpo que é mais de criança do que de mulher, que a compreensão de que houve um estupro, o reconhecimento da gravidez e a decisão de interrompê-la vem tarde. Aí, não raro, porque elas próprias não têm como ter autonomia, são representadas pelos pais, ainda acontece de juízes reacionários adiarem propositalmente a decisão. Porque é um direito delas fazer o aborto legal e seguro até a vigésima segunda semana, mas juízes às vezes barram esse direito ao se recusar a dar a decisão até o prazo.

São meninas, muito mais do que mulheres, que correm o risco de serem presas se esse troço virar lei. Agora sabe o que é engraçado? Engraçado talvez não seja o termo, mas sabe o que inacreditável? Que as pessoas não têm qualquer noção? Vocês sabem o que a Bíblia fala sobre concepção? Sobre em que momento começa a vida?

Segundo o Gênesis, 2:7, Adão se torna uma alma viva no momento em que Deus sopra em suas narinas. É no momento em que respira pela primeira vez. O Gênesis também descreve a morte de seres que “respiravam o sopro que dá vida”. As palavras hebraicas que as Bíblias costumam traduzir por “vida”, no Velho Testamento, são hayyim, ruah e nefesh.

Todas querem dizer o ato de respirar. Os hebreus compreendiam estar vivo como sinônimo de estar respirando. Não se respira dentro do útero. A gente pode ir além. O Êxodo 21, versículos 22 a 25, determina regras para convívio. E uma das regras é de que se um homem agride alguém e a pessoa morre, a retaliação é de que o homem deve ser executado. Uma vida por outra vida. Mas se alguém bate numa mulher grávida e o feto morre, aí deve ser aplicada uma multa a ser estipulada pelo marido dessa mulher. E não pode ser uma multa exorbitante, um comitê faz a arbitragem. Não se trata, aqui, de fazer qualquer julgamento moral a respeito da Lei de Talião. Não vivemos mais na antiguidade. É só reconhecer o fato de que o Velho Testamento não encara o feto como um ser humano vivo, com plenos direitos.

Eclesisastes 11:5 até sugere, o hebraico não é claro, jogar a coisa um pouco mais cedo, fala daquele momento em que “o sopro de ar chega aos ossos”, que talvez queira dizer lá pela vigésima quinta semana, quando o feto começa a se mexer. Isso seria uma interpretação generosa do que quer dizer “o sopro de ar chegar aos ossos”. Minha fonte habitual para interpretação do texto bíblico é o professor Dan McClellan, ele tem um excelente canal no Instagram e no TikTok onde trata disso, além de cristão é PhD em estudos bíblicos. Aqui não se trata de falar do que uma tradução da Bíblia diz. O problema é o que está no texto original. No original fala da alma que respira, na tradução está escrito vida. Não é errado, apenas omite a precisão com que se definia no texto original o momento em que há vida. É o momento em que se respira. Vida, na Bíblia, é sinônimo de respirar. O momento do nascimento. E isso tampouco é polêmico. No judaísmo, que ainda lê o Pentateuco em hebraico, é muito claro que a vida começa no nascimento.

A gente compreende o processo de gestação muito melhor do que as pessoas compreendiam no Antigo Egito, em Canaã ou na Mesopotâmia. Assim, como não adotamos mais o Código de Hamurabi, que inspirou o regramento social no Antigo Testamento, não precisamos achar que a vida começa no nascimento. Mas, não, a Bíblia não considera um aborto igual a um assassinato. Literalmente a Bíblia faz a distinção entre um e outro. E essa conversa é mais longa do que isso. Vem comigo.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

A bancada evangélica não representa o Brasil. Na verdade, possivelmente sequer representa os eleitores evangélicos. É gente demais, com muitas opiniões diferentes. O ponto aqui é o seguinte. Até os anos 1970, quando eram muito poucos os evangélicos aqui no Brasil, nos Estados Unidos havia uma clara distinção entre católicos e protestantes. Católicos eram radicalmente contra o aborto, protestantes não eram. Os grandes televangelistas americanos, nessa época, nunca apresentavam aborto como pauta relevante. Quando Roe vs Wade foi definida na Suprema Corte, a decisão que por cinquenta anos manteve o aborto legal por lá, não houve nenhuma polêmica. Nada. A decisão pareceu razoável a quase todo mundo.

A coisa começou a mudar quando Ronald Reagan chega ao governo e um grupo de publicitários ligados ao Partido Republicano começa a procurar temas que não apareciam na política para transformá-los em assuntos mobilizadores. A ideia, aqui, é formar identidade. Bombardear um público mais conservador com assuntos que poderiam distingui-los claramente de eleitores menos conservadores. A gente vivia uma ditadura, nessa época. Mas os eleitores na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, votavam na centro-esquerda numa eleição, na centro-direita na outra. Em democracias estáveis, não havia grandes temas que distinguissem tanto um grupo do outro. Havia um acordo básico sobre quais eram as regras da sociedade com a qual todos os partidos concordavam. As democracias não eram polarizadas e o que aqueles publicitários acreditavam é que polarizar mais era o caminho para vencer mais eleições. E a maneira de fazer isso foi adotar alguns temas. Escolheram dois. O direito de ter armas pesadas e a proibição do aborto. É. Até iniciozinho da década de 80, a NRA, o poderoso lobby americano das armas, fazia campanha pelo contrário. Para garantir que a licença fosse difícil de conseguir e só para armas de caça para caçadores, ou revólveres para quem quisesse. De novo: com licenças difíceis para só gente responsável conseguir. Ser conservador era assim.

A coisa foi pensada como campanha publicitária. E funcionou. O Brasil importou essa lógica. Nós mesmos mudamos muito. As mulheres ainda usam, na praia, biquínis bem pequenos quando comparados ao resto do mundo. Mas isso é só uma pista de como a sexualidade já foi encarada com muito mais leveza por aqui. Quando eu era garoto, mulheres famosas, atrizes principalmente, se despiam, nas páginas das revistas e todos percebiam aquilo como um gesto de libertação. De muheres mostrando autonomia com seus corpos. O Carnaval tinha muita nudez porque era uma festa de liberdade. As novelas tinham nudez. Quando Pantanal estreou foi também símbolo de um Brasil que estava ficando mais livre junto com a democratização. Aquilo era uma celebração do fim da censura. É claro que havia um apelo à sensualidade, à sexualidade, e hoje mesmo na esquerda isso é visto com muita desconfiança. Como ousa uma mulher se despir num filme, numa peça, com o objetivo de buscar tesão. A gente fala de casamentos abertos, mas todo mundo está vigiando cada pequeno desvio. Está tudo com muita regra. Nós nos tornamos o país mais conservador do nosso hemisfério. A gente está careta. Muito careta.

E, ainda assim, existe um motivo para o Estado ser laico. Não é por ser antirreligioso. É por ser favorável à liberdade religiosa. Para que todos possam escolher que religião vão celebrar, ou mesmo escolher não ter religião. Para isso funcionar, é preciso que o Estado não assuma os valores de nenhuma religião. É para que todas possam caber. É para que, num país fundado católico, evangélicos tenham o direito de celebrar seus cultos em paz, com toda a devoção que a fé os levar. O debate sobre em que momento começa a vida, do ponto de vista legal, não pode usar por critérios nenhuma religião. Nem a do judaísmo, nem a leitura do protestantismo dos anos 80 para cá.

A ciência sugere o momento da formação do sistema nervoso central. É razoável. Mas podemos ter a conversa sobre algum outro critério para as leis. Critério religioso não pode ser. O argumento tem de ser outro. Numa democracia, precisa ser um argumento não-religioso.

E prender meninas estupradas pelo padrasto que mal entenderam ainda o tamanho da violência que sofreram? Isso é só crueldade. Uma crueldade profunda. E, olha, os deputados já deram para trás. Perceberam que o brasileiro pode até ser conservador. Mas não é mau.

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