Quantas pessoas cabem na Paulista?

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No ano passado, a Parada LGBTQIA+ levou, para a avenida Paulista, três milhões de pessoas. Na edição anterior, 2022, quando estava para acontecer a eleição presidencial, foram quatro milhões de pessoas. Este ano, não. Este ano foi diferente. Setenta e três mil e seiscentas pessoas no momento de pico, lá por volta das quatro da tarde.

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O que mudou? O que mudou é que não estou sendo justo, aqui. É comparar bananas com laranjas. Os organizadores seguem falando em três milhões de pessoas, como falaram em 2023. Só que a equipe de pesquisadores do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da USP, trouxe para o Brasil uma técnica nova de contar grandes multidões.

Eles sobem drones que fazem lá de cima uma sequência de fotografias verticais da multidão, fotos com alta definição. Aí estas fotografias são costuradas por um aplicativo com inteligência artificial que exclui pessoas duplicadas. Ou seja: tirou uma foto, andou uns tantos metros, tirou uma segunda. Nas franjas vão haver pessoas que andaram um pouco, se mexeram e aparecem na ponta de uma foto e no início da outra. O programa identifica essas duplicações e as exclui. Ao fim você tem uma grande tira, o registro da avenida inteira num determinado período. Nessa hora entra outro programa, também movido a inteligência artificial, que conta cabeças. Literalmente.

Essa contagem não é uma estimativa daquelas de antigamente, em que se afere mais ou menos densidade, faz-se uma conta de quantas pessoas cabem por metro quadrado, e é lançada uma estimativa qualquer. Não. Essa contagem é um programa que parte de uma fotografia da avenida inteira num período e conta cabeças. De um lado, a conta de três milhões de pessoas. Do outro, setenta e três mil e seiscentas pessoas.

E, olha, isso dá uma avenida Paulista cheia pra caramba, tá? É gente que não acaba mais.

A Marcha para Jesus, que aconteceu na semana passada no Centro de São Paulo, levou vinte e nove mil e duzentas pessoas. Isso segundo a USP. Também é um mar de gente. Os organizadores falaram em duas milhões de pessoas.

No dia 25 de janeiro deste ano, o ex-presidente Jair Bolsonaro levou para a Paulista cento e oitenta e cinco mil pessoas por este sistema de contagem. Mas a Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo achou que eram 600 mil, pelos métodos antigos. Nem tão inflado quanto os organizadores de manifestações costumam fazer, ainda assim bem longe da conta dos cientistas. No Ato de Primeiro de Maio, Lula levou para ouvir seu discurso mil seiscentas e trinta e cinco pessoas. Baita fiasco.

A essa altura já deu para sacar que a conta não está inflando os números de um e baixando os do outro, né? É só um jeito novo de fazer essa conta. Mas é um jeito de fazer conta que, justamente por ser muito mais preciso, transforma a maneira como percebemos a realidade. O que os pesquisadores da USP estão fazendo é redefinir a ideia de que tipo de números formam uma multidão. Com menos de 200 mil pessoas, a manifestação bolsonarista de janeiro foi gigante. Com quase setenta e cinco mil pessoas, a Parada LGBTQIA+ deste ano foi, asinda assim, muito, muito grande. Como costuma ser todos os anos.

Só que tem uma pergunta importante pra gente fazer aí. Esses novos números, esta compreensão do que a realidade é, mudará a capacidade de grandes multidões terem impacto político? Quando a gente falava de milhões para cá, milhões para lá, as televisões enchiam suas telas, os jornais esticavam as manchetes, o Congresso Nacional erguia o olho, o Supremo Tibunal ficava atento e o Palácio do Planalto tremia ou celebrava. Vai continuar assim quando a gente falar que tinha cem mil pessoas na rua?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

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Eu fui um cara-pintada. Minha geração estreou na política assim. A maior das nossas passeatas foi em 18 de setembro de 1992. Só em São Paulo, nas estimativas da época, estavam lá no Anhangabaú, setecentas e cinquenta mil pessoas. Não vi aquela multidão. Vi uma bastante menor, na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Lembro como se fosse hoje, de saltar do túnel do metrô e ver um mar de gente até quadras à frente, na Igreja da Candelária. Quem conhece o Rio pode bem imaginar quanto chão é. É muito chão. Eu ainda estava meio atordoado, nunca tinha visto tanta gente, quando uma menina que tinha lá a minha idade, dezoito anos, por aí, passou pintando os rostos da gente com gouache verde e amarelo. Era festa, era alegria, e era pura política. A gente queria derrubar o presidente. Legalmente.

A conta que costumamos usar para o momento de auge das Jornadas de Junho, isso foi no dia 20 de junho de 2013, é de que um milhão de pessoas foram para as ruas em todo o país. Eu estava na rua, também. Como jornalista, observando e anotando. No Rio. E, de novo: era um mar de gente. Tinha gente que não acabava mais na rua. A conta, em todo o país, um milhão.

Impeachment da presidente Dilma. Treze de março de 2016. Um milhão e quatrocentas mil pessoas na avenida Paulista gritando fora Dilma, com o boneco do presidente Lula de presidiário e o pato inflável na frente da Fiesp. Nesse dia, segundo as estimativa da época, em todo o Brasil três milhões e seiscentas mil pessoas foram para a rua.

Todas essas manifestações foram realmente gigantes. Como não dá para subir drones no passado e fazer a fotografia aérea de cada uma delas, a verdade é que não temos como saber os números reais. O que a gente consegue é estimar a ordem de grandeza. Estamos falando de dezenas de milhares em quase todas as grandes manifestações. Estamos falando de algumas poucas que podem ter ultrapassado os cem mil e talvez encostado perto de duzentos mil. Não estou sugerindo que passar dos duzentos tenha sido impossível, mas vocês pegaram a ideia, não é?

O problema é o seguinte. Existe uma lógica em democracias. Não é à que o direto de livre manifestação e o direito de livre assembleia são uma das pedras fundamentais do regime. Nós, os eleitores, nos manifestamos quando dizemos o que pensamos nas redes sociais, em blogs, mesmo em jornais. Nos manifestamos quando vamos às urnas, de dois em dois anos, para eleger parlamentares e chefes de Executivo. E podemos nos reunir com quem quisermos com o objetivo de fazer mobilização política. Muito de vez em quando acontece de algo tão grande mobilizar tanta gente que aí explode uma manifestação. Pode ser uma coisa mais festiva, como a Parada LGBTQIA+, pode ser algo mais sisudo, como foi 2013. A forma não importa. É tudo a mesma coisa. Um jeito de chamar a atenção de políticos, de legisladores, prefeitos, governadores, presidentes. Dizer estamos aqui, em conjunto, nos demos ao trabalho de ir pra rua dizer que estamos insatisfeitos. Que tem coisa que precisa mudar.

A nossa história aqui, da Nova República, diz que manifestações grandes funcionam. Elas têm impacto. Chamam atenção. O impeachment do Collor aconteceu, o impeachment da Dilma aconteceu. 2013 desaguou na Lava Jato. Quando uma quantidade muito grande de brasileiros vai pra rua, as engrenagens se mexem. Mesmo quando falamos de manifestações recorrentes e mais celebrativas, como é o caso da LGBTQIA+ e da Marcha para Jesus, ainda assim são símbolos de representatividade. De brasileiros e brasileiras que, por um motivo ou por outro, querem se apresentar, dizer que existem, que têm capacidade de se reunir no entorno de uma identidade da qual compartilham e, sim, importante: representam votos. Estes dois movimentos são movimentos que aumentaram muito em importância política nos últimos dez anos. As manifestações fazem parte disso.

Mas fazem parte por quê? Olha, São Paulo é a maior cidade do país. Tem doze milhões de habitantes. Se dez por cento dos paulistanos vão às ruas no entorno de um único grito, é evidente que o Congresso presta atenção, que o noticiário abre manchete. É evidente que mobiliza. Mas e quando não são um milhão de pessoas na rua. E quando é cinquenta mil, cem mil, mesmo que duzentos.

A história da Nova República é uma na qual grandes manifestações ditaram os momentos de virada. É por causa do visual das aglomerações gigantes? Ou foi por causa dos números superlativos? Porque, olha, é hora de a gente reajustar a percepção. Aqueles números eram de um exagero sem tamanho. Cem mil pessoas é o tamanho de algo gigante. Dez por cento da maior cidade do país não está na rua. Está em casa, assistindo pela TV.

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