Tolerar intolerantes?
Vamos falar de Paradoxo da Tolerância? Sabe o que é, Bolsonaro já não é presidente faz um ano e meio e a gente continua lendo, nas redes, aqueles slogans que se repetem. Não se tolera os intolerantes. Se há dez pessoas numa mesa, um nazista senta e ninguém se levanta, então existem onze nazistas à mesa. Em geral essa vem afirmando que a frase é um ditado alemão. Ou então, claro, tem aquela do quadrinho do Karl Popper, com um Hitler e uns nazistas, explicando o Paradoxo da Tolerância. E tudo muito bacana, mas o que é que essas pessoas estão realmente dizendo?
Está se consolidando uma convicção, em parte da esquerda brasileira, de que toda direita é bolsonarista. De que toda direita é intolerante. De que, portanto, nenhuma candidatura de direita a nenhum cargo é por natureza democrática. Olha, quem pensa desse jeito não entendeu o Popper.
Deixa eu pagar o pedágio, logo. A gente precisa, na internet, pagar uns pedágios. Dizer umas coisas bem rápido porque não há qualquer espaço para raciocínios que se alonguem. As pessoas já entram com uma voadora depois do título, não dá para esperar trinta segundos de comentário. Todo mundo quer logo encaixar a gente no time vermelho ou no time verde-amarelo, se não se posiciona com clareza é porque é o inimigo. Então vamos lá: Jair Bolsonaro é fascista.
Quando digo que Bolsonaro é fascista não é por xingamento. Não é porque fascista é uma palavra forte pra quem é de direita. Uso a palavra fascista como alguém que já estudou muito o fascismo, escreveu um livro sobre o Integralismo, o movimento fascista brasileiro de um século atrás, e sei que a visão de país de Bolsonaro e a visão de país de Plínio Salgado é a mesma. Eles têm o mesmo ideal. Bolsonaro descende politicamente de Plinio. Ele representa a mesma ideia de Brasil. É a mesma coisa. Se um era fascista, o outro é.
Agora, não existe, jamais existiu, um ditado alemão que fala que se você senta à mesa com fascista, fascista será. A Alemanha pós guerra seria impossível de se democratizar se fosse proibido conversar com nazista. Vocês acham que acordo de paz se faz como? Sentando com o pior inimigo e chegando a um acordo que seja aceitávei para ambos. Aliás, viver no Brasil nos últimos anos é uma arte que exigiu de todos nós sentarmos à mesa com bolsonaristas em festas de casamento, em encontros de turma de colégio, em aniversários, com alguma frequência até em almoços de domingo da família para não desagradar um avô, uma mãe, um marido ou mulher. E não tem nada de errado nisso. Uma democracia é feita pra gente conversar com pessoas que pensam muito diferente, mesmo.
Infelizmente não tenho aqui, comigo, minha cópia de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, o livro do Popper no qual está o Paradoxo da Tolerância. Mas é um calhamaço. Um livro de quase mil páginas, que em muitas edições vem em dois volumes. E tudo que ele diz sobre o Paradoxo da Tolerância é uma nota de rodapé. Tão curto que dá para ler aqui inteiro.
“A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.
Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes. Desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente à opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente.
Mas devemos-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força. Pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar nos níveis dos argumentos racionais, ao começar por criticar todos os argumentos e proibindo seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos ou pistolas.
Devemos-nos, então, reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante. Devemos exigir que qualquer movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que qualquer incitação à intolerância e perseguição seja considerada criminosa, da mesma forma que no caso de incitação ao homicídio, sequestro de crianças ou revivescência do tráfico de escravos.”
Essas são as palavras do Popper. O tal ditado alemão que não existe, o quadrinho com os nazistas, tudo isso vem deste parágrafo. A sociedade aberta da qual ele fala é uma sociedade democrática. E o Brasil vive um momento tão delicado, que é importante, realmente importante, a gente dissecar as ideias do Popper. Como lidamos com a existência de uma direita autoritária sem perdemos nós a tolerância? Como garantir uma sociedade plural? Sem pluralidade não há democracia. Mais importante: não é democrático o regime que põe pra fora toda a direita.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Yan Boechat é fotógrafo de guerra. Jornalista bom, escreve bem, mas seu trabalho é principalmente cobrir guerras. Só que ele está no Rio Grande do Sul. O que viu lá, em termos de destruição, é pior do que viu na Ucrânia, no Oriente Médio. Pior do que viu em guerras. Vale muito ler o Yan para ter uma noção do problema com o qual os gaúchos terão de lidar após a enchente. Vale muito ler. E os assinantes do Meio podem ler já. Está no site.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Nós, democratas, que desejamos continuar vivendo numa democracia, temos algumas questões com as quais lidar. Vamos com cuidado em cada uma delas.
Jair Bolsonaro é, indiscutivelmente, o líder da direita brasileira. Ele é a referência dos eleitores de direita e, por enquanto, sua recomendação ajuda políticos de direita a se elegerem. Quando ataca um político de direita, esse político perde eleições.
Jair Bolsonaro não é um democrata. Não agiu como democrata durante seu governo, tratava a presidência como se tivesse mando sobre os outros poderes. Temos provas, a partir da investigação da Polícia Federal, de que ordenou o planejamento de um golpe de Estado, que chegou a ser organizado por três generais de Exército, um almirante de Esquadra, e um conjunto de políticos e militares.
Também é verdade que Jair Bolsonaro teve 58 milhões, 206 mil, 354 votos em 31 de outubro de 2022. Esta é a segunda maior votação que um candidato à presidência teve na história do Brasil. Em nenhuma eleição passada qualquer político teve mais do que isso. Ele só foi batido por Lula, naquelas mesmas urnas de 22. Dois milhões de votos, só isso, os separam. Bolsonaro recebeu 49% dos votos numa eleição em que uma quantidade recorde de eleitores foram às urnas no segundo turno.
Se não fosse um autoritário golpista, se não tivesse agido de forma completamente irresponsável durante a pandemia, tudo indica que teria sido reeleito com tranquiliade. Mesmo com tudo isso, foi por muito pouco.
Uma pesquisa realizada no mês passado pelo Ipec, o antigo Ibope, revelou que 18% do eleitorado se considera de esquerda, 28% de centro e 41% de direita.
Isso é autodeclaração. Não quer dizer que as pessoas saibam o que essas palavras querem dizer, mas não importa. É como as pessoas se compreendem. O número de brasileiros que se considera de direita é mais que o dobro dos que se consideram de esquerda. Se a gente fosse tomar pelo Twitter, onde a turma de esquerda diz que centro não existe, centro na verdade é direita disfarçada, aí tudo piora muito. Se o centro é mesmo direita, então para cada brasileiro de esquerda, há quatro de direita. Só que isso é uma bobagem, porque basta olhar para esses números e entender que os brasileiros de centro votaram em peso na candidatura de Lula. Se dependesse apenas de eleitores de esquerda, nunca teríamos presidentes de esquerda. A esquerda precisa do centro. A direita não precisa.
A tese fundamental do Popper é a seguinte: uma sociedade aberta precisa ser plural e tolerante. Isto quer dizer que todas as correntes de opinião têm o direito de estar no jogo. Quer dizer que a esquerda, o centro e a direita são legítimas. Quer dizer, também, que uma sociedade em que um dos três grupos esteja banido, seja considerado ilegítimo, não é uma sociedade plural. Não é uma sociedade aberta. Não é democrática. É nessa ideia que entra a tolerância. O dever de cada corrente de opinião é topar a existência das outras. Se você topa a existência de uma esquerda, um centro e uma direita, você é tolerante.
Só que isso não é fácil, tá? Porque não é topar dizendo o que o outro pode. É topar o outro como ele quer ser, nos termos dele, com as opiniões dele. O Popper jamais diz que não deve se tolerar os intolerantes. Pelo contrário, ele é muito claro. De novo as aspas. “Não insinuo”, isso é o Popper dizendo, “que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes, desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente à opinião pública.”
Quer dizer: está tudo certo algumas correntes serem intolerantes desde que elas não ameacem à democracia. Jair Bolsonaro ameaçou a democracia.
Mas aí precisamos nos fazer uma pergunta. Todos os políticos de direita brasileiros seriam golpistas? Levariam, necessariamente, ao fim da democracia? Porque a maioria dos políticos de direita já estavam aí antes de Bolsonaro. E nunca, nenhum deles, ameaçou qualquer coisa. Foi Bolsonaro e o círculo dele.
Podemos ampliar a pergunta. Todos os 58 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro desejam o fim da democracia? As pesquisas dizem que não.
Mas, vamos lá. Se respondemos sim a ambas as perguntas, se consideramos que todo político de direita é golpista e metade do eleitorado não deseja a democracia, então estamos sugerindo que devemos excluir do jogo metade do país. Mas, se excluímos por completo a direita, já não temos mais uma sociedade aberta. Não há mais democracia porque não cumpre os requisitos mínimos. Se nos recusamos a conversar com quem é de direita, deixamos nós de cumprir o requisito da tolerância. Da capacidade de ouvir e aceitar quem pensa muito diferente.
Um dos problemas que temos aqui, só para ficar claro, é que vivemos num país conservador. Jair Bolsonaro, ao menos por enquanto, está fora do jogo. Não vai ser candidato. E precisamos, neste momento de radicalização, aprender a voltar a conversar, a conviver. Sentar com alguém que tenha votado em Jair Bolsonaro não é se tornar fascista, é fazer o que democratas fazem. Ouvir. Se a gente não começar a compreender e aceitar os anseios e os medos dos eleitores de Bolsonaro, eles seguirão eleitores de Bolsonaro. Vejam: compreender e aceitar não é o mesmo que concordar. Mas é o mesmo que reconhecer que há um debate para se ter.
Tem gente demais repetindo que não se deve tolerar os intolerantes sem nunca ter lido Popper, sem ao menos entender o que o Popper estava dizendo. É pegar uma nota de pé de página e ignorar os dois volumes que vêm ao redor dela. Ninguém falou que ia ser fácil. Que é fácil. Em momentos como esse, é muito, muito difícil.
Mas só para deixar claro: se concluirmos que metade dos brasileiros não podem fazer parte do jogo, aí quem matou a democracia fomos nós. Sabe, não chegam a vinte os homens e mulheres que planejaram um golpe de Estado. Estes cometeram um crime, devem ser julgados e presos. Mesmo que a gente some os mil e poucos no inquérito do 8 de janeiro, isso é traço percentual perante o Brasil inteiro. Os 58 milhões de eleitores que votaram em Bolsonaro são brasileiros como nós, com valores diferentes dos nossos, e ao invés de sair condenando a gente precisa parar para ouvir. Não existe democracia brasileira sem eles terem voz, sem eles terem parte de seus objetivos atendidos. É dura a coisa. Mas, se a gente quer uma democracia, é assim que funciona.
Pregar o fim do diálogo não é o jeito de salvar democracia alguma. Pregar o fim do diálogo, dizer que são inaceitáveis, é antidemocrático.