Sem articulação governista, Senado discute PEC que pode levar à privatização de praias
Sem contar com qualquer articulação de senadores governistas e em uma Casa esvaziada, uma audiência pública na Comissão de Constitiução e Justiça (CCJ) do Senado sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pode abrir caminho para a privatização do litoral brasileiro foi realizada hoje, sob a presidência de Flávio Bolsonaro (PL-RJ). A audiência havia sido pedida pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE), que não compareceu. Flávio é o relator e trabalha pela aprovação do texto, que transfere os chamados terrenos de marinha, que pertencem à União, para estados, municípios e até para a iniciativa privada. No debate, ele recebeu apoio da grande parte da tropa oposicionista, embora tenha ficado isolado em sua posição de defensor da proposta diante dos técnicos do governo, de entidades privadas e de representantes da sociedade civil que não querem a aprovação da emenda.
A bióloga Marinez Scherer, coordenadora-geral de Gerenciamento Costeiro do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática, explicou que não é à toa que esses terrenos que se situam nas áreas litorâneas e ao longo de cursos d’água. “Trata-se de uma questão de segurança humana, ambiental e ecológica”, explicou.
A gerente técnica da Associação de Terminais Portuários Privados (ATP), Ana Paula Gadotti Franco, também se posicionou contra a mudança. “Pode parecer paradoxal que a iniciativa privada queira mais controle (da União) sobre seus negócios, mas isso nos dá em algumas situações uma segurança jurídica maior porque se os terrenos de marinha forem totalmente privatizados um terminal portuário não poderá fazer uma expansão, ou seja, ficará confinado no seu terreno. Se olhar para um lado e não tiver espaço para ele crescer, movimentar carga, criar novos berços, pode perder competitividade”, disse.
A realização da audiência era uma exigência para que a proposta pudesse seguir para a aprovação. Da base do governo, somente a senadora Leila Barros (PDT-DF) compareceu à audiência e disse que vai pedir ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que a proposta não vá à votação sem que passe primeiro pela Comissão de Meio Ambiente, presidida por ela. Foi uma forma de retardar a votação em plenário e permitir que o governo comece a se articular para derrotar a proposta.
A audiência foi convocada na última quarta-feira, enquanto o Senado estava em trabalho remoto. Os representantes dos órgãos reclamaram que foram avisados em cima da hora. Apesar disso, houve movimentação de moradores ribeirinhos, de comunidades pesqueiras e de entidades ambientalistas que foram à comissão protestar contra a aprovação da proposta.
No parecer, Flávio Bolsonaro defende que “o terreno de marinha, da forma que atualmente é disciplinado pelo nosso ordenamento, causa inúmeras inseguranças jurídicas quanto à propriedade de edificações” e indica que “muitas pessoas adquiriram imóveis devidamente registrados na serventia de registro de imóveis e, após decorridos muitos anos, passaram a ter suas propriedades contestadas pela União, quando da conclusão de processos demarcatórios”.
O texto não fala sobre privatização de praias, mas as entidades alegam que ele abre caminho para outro projeto que está em tramitação na Câmara, que muda o gerenciamento costeiro. A proposta discutida hoje já foi aprovada na Câmara e sua discussão foi retomada agora na comissão do Senado. Hoje, do lado da oposição, até o relator do texto na Câmara, o deputado ruralista Alceu Moreira (MDB-RS), falou, de forma remota, em defesa da aprovação no Senado. Foi apoiado por Esperidião Amin (PP-SC) e Marcos Rogério (PL-RO). Do lado do governo, Leila Barros (PDT-DF) teve ajuda somente do deputado Tulio Gadelha (Rede-PE), que é relator da Lei do Mar, que está na Câmara e que institui a Política Nacional para Gestão Integrada, a Conservação e o Uso Sustentável do Sistema Costeiro-marinho.
‘Cortiços e cicatrizes’
Durante a audiência, o deputado Alceu Moreira (MDB-RS) deixou claro o interesse imobiliário da proposta. Ele taxou comunidades que hoje vivem e sobrevivem da pesca e que se situam em áreas litorâneas como “verdadeiros cortiços à beira-mar” que provocam “cicatrizes nas cidades”. “São lugares absolutamente nobres e que há décadas não tiveram nenhum investimento”, ressaltou.
Gadelha rebateu dizendo que o deputado estava exercendo racismo ambiental e que há muito interesse econômico por trás desse projeto. E fez uma acusação a prefeitos que se colocaram a favor da proposta. “A gente sabe que é nos municípios que acontece a barganha política. Os terrenos de marinha são de propriedade da União e a proposta favorece a especulação imobiliária, em prejuízo das comunidades pesqueiras artesanais e do trabalhado de preservação”, disse o deputado.