Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

Nova enchente histórica só deveria ocorrer 360 anos após 1941, diz autor de livro sobre tragédia

“As pessoas perguntam: qual é o teu sentimento em ter que sair de casa? Bom, primeiro perplexidade, nunca imaginei passar por isso. Segundo, impotência, por estar submetido a uma condição completamente diferente na tua vida e não poder fazer nada quanto a isso. E a terceira, revolta pelo comportamento das autoridades”, explica ao Meio Rafael Guimaraens, de 67 anos, autor de A Enchente de 41

PUBLICIDADE

Por uma infeliz ironia, o autor do livro que retrata a até então maior enchente de Porto Alegre viu o bairro que mora há 30 anos ser inundado por aquela que veio a ser a maior enchente do estado. Ele e a mulher, Clô Barcellos, deixaram o apartamento no bairro Menino Deus com água pela cintura. “Foi um caminho árduo de duas quadras até chegarmos a uma área seca, cuidando para não escorregar. Quando chegamos no seco, as pessoas estavam passeando com carrinho de bebê, com seus pets, e nós encharcados. Foi um contraste muito forte.”

Este não foi o único trauma causado pela enchente. A sede da editora do casal, a Libretos, está localizada na Avenida Voluntários da Pátria e foi completamente inundada. A área ainda está isolada, então, só quando a água baixar é que Guimaraens saberá a extensão dos prejuízos. Confira os principais trechos da entrevista.

O que motivou o livro fotográfico sobre a enchente de 1941?
Eu não era nascido na enchente de 1941, demorei um pouco para nascer. Mas os reflexos da enchente estavam presentes nos relatos das pessoas mais velhas. Os parentes também com muitas histórias, e as histórias se misturam com lendas. Enfim, essas coisas todas que acontecem em um episódio tão traumático e dramático como esse. Isso sempre esteve na minha cabeça. Mas eu via que as fotografias da enchente mostravam a paisagem de uma cidade fragilizada diante da força da natureza. Ao mesmo tempo, eram fotografias muito bem feitas. Elas sempre me impressionaram. Passamos pelo centro [de Porto Alegre] e muitos daqueles lugares a gente pensava “imagina isso aqui abaixo d’água, por 1,5 m de água”. A ideia era fazer um álbum de fotografias com pequenas legendas, para situar. Mas, pesquisando, não havia nada escrito sobre a enchente.  Tem um álbum uma edição essa da revista do Globo, material primoroso. Só isso. Então, me propus a escrever e fizemos um projeto.

É possível fazer uma comparação entre a enchente de 1941 e a atual?
Há realmente uma enorme coincidência em relação à soma dos eventos que provocaram tanto uma quanto a outra. Porto Alegre tem uma história de enchentes, está propensa a elas. É uma cidade que está colada em um enorme manancial de águas. O Guaíba é alimentado por cinco rios: Gravataí, Caí, Taquari, Jacuí e Rio dos Sinos. Essa água desce, passa por Porto Alegre e vai sair no canal de Itapuã, que é um canal muito estreito. O Guaíba é um funil. E o escoamento das águas, mesmo em uma situação normal, é muito difícil. O que aconteceu em 41 e que se repetiu agora: muita chuva em Porto Alegre, uma chuva incessante e muita chuva nas nascentes de todos esses rios. Pelo menos dois deles são muito caudalosos. E o caminho dessa água, que está em um lugar mais alto, é descer. Então, houve essa coincidência do processo combinado das chuvas em Porto Alegre e o vento que fazia a água descer a 60km/h. É uma velocidade muito grande para uma corrente de água. Depois, com o Guaíba já transbordado, veio o vento sul, que não apenas dificulta o escoamento, mas empurra a água de volta. Nos dois casos [1941 e agora], aconteceu a mesma coisa do ponto de vista climático e meteorológico. Inclusive, com datas parecidas da evolução das águas. Cada enchente tem um cálculo baseado na combinação de fatores que resulta em um tempo de recorrência, quando o fenômeno pode se repetir novamente. No cálculo da enchente de 1941, era uma cota de 360 anos. 

Ao que você atribui o que está acontecendo agora? São as mudanças climáticas e também a ineficácia dos governos?
Sem dúvida nenhuma. E, quando se afirma isso, antecipam-se em dizer “não é hora de achar culpados”. As pessoas que não querem assumir responsabilidade sempre dizem isso.  

Quais foram os principais impactos da enchente de 1941?
Do ponto de vista do volume de água e do nível de altura que o Guaíba chegou, a enchente de 1941 foi menor do que essa. No entanto, do ponto de vista proporcional, para a população o impacto foi muito mais grave. Em 1941, o número de pessoas que precisaram sair de suas casas foi de 70 mil da população de Porto Alegre, que tinha 240 mil habitantes. Se esse percentual de 30% a 35% fosse agora, seriam cerca de 400 mil flagelados. [Na última divulgação da Prefeitura de Porto Alegre, o número de pessoas em abrigos é cerca de 14 mil]. Do ponto de vista do prejuízo para a população, foi muito pior, levando em conta que as construções eram casas de madeiras e as pessoas também moravam mais perto do rio. Naquela época houve enchentes nas cidades metropolitanas também, mas como não havia uma circulação de informação tão grande, ficou muito concentrado na enchente de Porto Alegre.

Foi a partir de 1941 que veio a ideia da construção do muro da Mauá, de preparar mais a cidade para futuras enchentes?
Sim. Depois que a enchente terminou, mais ou menos por essa época, 15 de maio, em junho se fez um grande seminário na sociedade de engenharia, em que se discutiu várias opções para proteger a cidade. As enchentes anteriores entravam pela Zona Norte e Sul da cidade, mas, enquanto afetava pessoas mais vulneráveis, não davam a devida importância. O problema foi quando a água chegou no centro, todo mundo se alarmou, porque tudo estava concentrado no centro da cidade. Então, nesse seminário se discutiram formas de proteger a cidade para quando se repetisse um evento desse porte. Entre as alternativas, discutiram fazer comportas dentro do Guaíba, abrir um canal direto para o oceano na nascente do Rio Gravataí e, por último, e que foi a escolhida, a cortina de proteção, a construção das Avenidas Beira-Rio e Castelo Branco, uma em direção à Zona Sul e outra à Norte, respectivamente, e no meio delas, o Muro. Toda essa essa cortina foi construída com o índice de 3 metros, que em relação aos rios de 1941, seria o adequado. A decisão foi tomada em 1941, mas a construção começou na década de 1970. Começou em 1971 e terminou em 1974.

E qual o efeito?
Eu sou da turma que não gosta do muro, que acha uma intervenção muito drástica na paisagem da cidade. O muro ficou 70 anos praticamente sem ser usado. Agora, temos que repensar essas coisas. Com as mudanças climáticas, é a terceira vez em 10 anos que ele foi necessário. Mas, em 2015, por exemplo, quando foram fechar, as roldanas que movimentam o portão estavam enferrujadas. É um descaso. Em uma situação que esses casos vêm se repetindo, o poder público precisa preservar, consertar, para que quando elas sejam necessárias, estejam em condições.

Pensar em soluções e repensar a forma que a cidade está construída só ocorre a partir de uma tragédia?
Sim. Ninguém vai impedir que chova forte nessas nascentes dos rios. Nem que a água chegue pesada ao Guaíba e que exista a coincidência da chuva no mesmo período nas nascentes e em Porto Alegre. Mas, em uma situação assim, o mínimo que se espera é a priorização de políticas ambientais consistentes. Agora, seria necessária a reconstrução do Código Ambiental que foi retalhado, as estruturas públicas, como o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), que foi extinto, e o próprio Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), que sempre funcionou bem e hoje vem em um processo de sucateamento. O caminho é esse,  reconstruir os órgãos ambientais, ouvir os técnicos, investir na Defesa Civil, porque em qualquer situação vai haver desabrigados, pela prevenção se reduz o dano, mas vai acontecer de pessoas terem que sair de suas casas. É por essas estruturas que se começa, depois se pensa em planos maiores, que tipo de alterações podem ser feitas na cidade. Há uma inteligência nas universidades voltada para o meio ambiente. Mas não é esse o caminho que está sendo feito. O prefeito divulgou que será contratada uma consultoria internacional. Um dinheiro que deveria ir para a ponta, construir a cidade, as estruturas públicas e ajudar as pessoas a reconstruir suas casas, vai ser pago para uma consultoria. 

De que maneira a pesquisa sobre a enchente de 1941 impactou sua visão sobre tragédias climáticas e a resiliência urbana?
A enchente de 1941 ficou muito forte no imaginário. Ela era um parâmetro para quando acontecia algo desagradável na cidade e a resposta era “é, mas na enchente foi pior”. Era um medidor de nível de tragédia. O livro é muito procurado. A obra [A Enchente de 41] conta um drama da cidade, tenta mostrar como era e como funcionava a cidade na época. Fazer a pesquisa é uma forma de viver as situações. Por exemplo, ao relatar a situação em que uma pessoa morreu, tu tentas imaginar essas situações como elas aconteceram. Além das fotos, as pessoas com a água pela cintura — e, de repente eu me vi lá, com água pela cintura. É uma situação um pouco estranha de viver.

Tu pretendes fazer um de registros fotográficos do que está acontecendo agora ou nem deu tempo para pensar nisso ainda?
Não penso nisso. Deixo para os mais jovens. As fotos que me motivaram a fazer o livro são as que foram feitas naquela época e que não são muitas. Hoje, qualquer pessoa anda na rua com uma máquina fotográfica e uma filmadora. E não apenas as pessoas podem fotografar ou filmar o que elas quiserem, mas há a possibilidade instantaneamente de transmitir essas imagens para qualquer lugar do mundo. Isso é uma coisa extraordinária. Então, deve ter bilhões de imagens. As imagens de 1941 eram de fotógrafos profissionais, dentro dos critérios da época, e são fotos muito boas no sentido de enquadramento, de estampar e reproduzir o drama. Agora, mesmo entre amadores e pessoas anônimas, entre bilhões de fotos acaba tendo fotos boas. Essa circulação de informações instantâneas em enorme quantidade é uma coisa impressionante. A motivação que eu tive para o livro eram as fotos disponíveis e contar uma história que não estava sendo contada. Bom, essa história está sendo contada diariamente.

As fotografias são bens que mantêm a memória, que nos fazem relembrar as coisas do passado. E agora, essas pessoas que perderam suas casas, de certa forma, elas também perderam essas memórias. Tu poderias falar um pouco dessa questão que envolve fotografias, memórias e a situação que vivemos?
É verdade. A pessoa perde seus eletrodomésticos, mas perde também as suas lembranças. Por exemplo, eu tenho pouquíssimas fotos da minha infância e adolescência, porque não tiravam muitas fotos e tem coisas que eu só lembro se eu vejo as imagens. Isso é impressionante mesmo. Às vezes, vou nas propriedades do arquivo para saber da época que a imagem foi feita. A fotografia tem esse poder de ativar a nossa memória. Ainda não tinha pensado neste aspecto e isso é algo que não tem preço. Uma geladeira ou uma televisão, você vai comprar outra, mesmo fazendo um enorme sacrifício, parcelando em 36 vezes. Mas essa memória que se perde dos objetos pessoais, pode ser de fotografias, mas pode ser também de um relógio ou um anel que foi um presente de formatura, um casaco que gostava, realmente quando se perde essa memória, se perde mesmo e não volta mais. Aquela memória que estava registrada vai se apagando.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.