Desinformação pode matar
A gente precisa falar sobre desinformação nas redes. Em momentos de tragédia como a atual, desinformação tem trocentos impactos. Um é de desperdício de esforço num momento em que nenhum esforço pode ser desperdiçado. A Defesa Civil, os Bombeiros, o Exército, não importa, lê nas redes que alguma crise pontual está ocorrendo em algum canto, chega lá, não era verdade. Está acontecendo muito. E aquelas pessoas são importantes. Se elas vão atender a um alarme falso, isso quer dizer que um alarme verdadeiro não foi atendido.
O segundo problema é uma questão de confiança no Estado Democrático. Por que o presidente Lula foi, logo no início da crise, para o Rio Grande do Sul acompanhado do presidente da Câmara dos Deputados, do presidente do Senado e de um ministro do Supremo? Chegando lá, logo se juntou ao governador. Aquilo é um símbolo importante. Sim, a política partidária existe. Mas é o Estado é impessoal. Não importa que partido esteja no comando de que instância ou de que Poder, o Estado precisa funcionar. E é importante, principalmente em momentos de crise, que as pessoas tenham a dimensão exata de o quanto o Estado está operando bem ou mal.
Deixa eu contar uma história pra vocês. Em setembro de 2001, eu era editor de internacional de um site que não existe mais chamado NO. Era meu primeiro cargo de editor, estava fazia uns três meses nessa função, e de repente acontecem os ataques às Torres Gêmeas. Foi um dia confuso, a internet funcionou muito mal o dia todo, muita coisa foi produzida, foi dita e, no final do dia, era o caos. Uma das fortes desconfianças que circulavam era de que o quarto avião, aquele que caiu no meio do mato na Pensilvânia, havia sido abatido pela Força Aérea americana.
O diretor de redação do NO. era o Marcos Sá Corrêa, um dos grandes jornalistas do Brasil. A gente estava conversando sobre essa hipótese e ele falou uma coisa da qual nunca esqueci. “Se eu sou o editor do New York Times e tenho em primeira mão a notícia de que a Força Aérea realmente abateu um avião de passageiros, numa circunstância como essa, seguro a notícia.”
O que ele queria dizer com isso é o seguinte: para onde ia o quarto avião? Para o Capitólio? Para a Casa Branca? Tudo indica que talvez os caças militares americanos talvez não tivessem escolha que não abater aquele Boeing. Mas se num momento tão delicado para a nação, em que acaba de ocorrer o maior ataque a solo americano desde Pearl Harbor, você dá essa notícia, pode causar uma sensação generalizada de desconfiança da sociedade em relação aos Estado. Em certos momentos, faz parte do trabalho da imprensa segurar algumas notícias. Por uma questão de interesse público. Depois, adiante, a notícia vai sair, as pessoas serão informadas. Mas, naquele momento, é preciso concentração para que todo mundo esteja unido para enfrentar a crise.
O Rio Grande do Sul não sofreu uma declaração de guerra. Está vivendo uma tragédia que vem na esteira das mudanças climáticas. Não é o caso de guardar notícias. Mas informar, nessas horas, se torna um serviço fundamental de segurança pública. É fundamental que as pessoas tenham exata noção de que serviços o Estado é capaz de prestar.
O Estado brasileiro, em todos seus níveis, é diretamente responsável por não ter uma política pública adequada para um mundo em transformação climática. Da direita à esquerda, por razões diferentes, o Brasil se recusa a perseguir o baixo carbono. Uns porque não acreditam que existam mudanças climáticas, uns segundos porque acham que progresso é botar floresta abaixo, os terceiros porque ainda olham para petróleo como riqueza e não veneno.
É fundamental a gente botar isso na frente de todo mundo. É fundamental, neste momento, termos este debate. A gente precisa mudar. Urgentemente.
Mas o Estado brasileiro sabe lidar com emergências. O Estado brasileiro tem gente bem equipada, de novo, Defesa Civil, Bombeiros, Forças Armadas, gente bem equipada, com experiência, com capacidade de ajudar. O Estado tem o poder de mobilizar grandes volumes de recursos que são necessários no momento da crise e, logo depois, no momento da reconstrução. E isso o Estado faz bem. Não é só o Executivo federal. São também os Executivos estaduais e municipais. É também o Congresso e o Supremo. Na hora da crise as instâncias funcionam. Nós não somos uma republiqueta. O Estado brasileiro sabe operar na hora em que toda a concentração é necessária.
Quando desinformação impede as pessoas de perceberem que o Estado está funcionando, isso pode querer dizer que alguém não saberá a quem pedir ajuda, ou não confiará numa orientação que venha do governo, ou boicotará uma iniciativa por qualquer motivo. No limite, isso pode querer dizer que os bens de alguém serão perdidos ou, pior, que a vida de alguém pode ser ameaçada.
Desinformação mata. E o pior é que não precisava ser assim. É possível atacar o problema. Nisso, o Estado brasileiro está paralisado.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Hoje eu e minha colega Flávia Tavares entrevistamos a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Essa conversa você poderá assistir amanhã, logo na terça dia 14 bem cedinho, no YouTube do Meio. Ela falou emocionada do impacto da desinformação nos trabalhos. Falou, também, que percebe uma mudança no poder político do país. A pedagogia do luto, como ela diz, é isso. O número de mortes faz as pessoas aprenderem. Ao menos algumas pessoas.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Redes sociais não são neutras. Não é um espaço onde todo mundo tem a mesma oportunidade de ser ouvido. Elas eram assim, mas desde que os algoritmos de recomendação foram implementados, a partir de 2012, isso mudou. O algoritmo é um editor. Ele escolhe o que vai ser visto por muita gente e o que não vai. Escolhe seguindo um critério: o que envolve emocionalmente a gente. É o que chamam engajamento. Para as redes, a vantagem desse envolvimento emocional é que a gente realmente engaja. A gente volta e volta. Isso quer dizer que a gente vê muita propaganda. Quem nunca clicou, aqui, num anúncio de Instagram? De TikTok? De Facebook? Esse troço funciona.
A gente já teve essa conversa antes, não é? O resultado prático é o seguinte: as redes escolhem as coisas mais sensacionalistas, mais conspiracionistas, mais controversas pra fazer explodir. Não é de propósito. O algoritmo não sabe distinguir verdade de mentira. O que ele sabe é perceber quando as pessoas estão engajando. O que quer dizer engajar? O conteúdo com o qual a gente interage mais. Tudo que faz passar raiva, tudo que dá aquele gostinho de “o meu adversário foi pego”, “o grupo de quem não gosto está errado”. Tudo que confirma para nós que nós estamos certos e aqueles outros caras lá estão errados.
As redes sociais são uma máquina de botar desinformação na cara de todo mundo. Sim, há inúmeros mecanismos de mitigação. Mas enquanto o drive do algoritmo for engajamento, desinformação vai ser mais distribuída do que informação. Pode piorar? Claro que pode. A Meta, por exemplo, está ativamente boicotando os veículos jornalísticos. Se vem de um veículo, o algoritmo trabalha para mostrar para menos gente. Ou seja, só piora.
Enquanto não regulamentar, não vai resolver.
Agora, desinformação acontece de três maneiras diferentes. Ela não surge do nada, na atmosfera. Existem as máquinas, pessoas contratadas para causar impacto no debate público. É uma ação proposital, mesmo. Em segundo, tem a pessoa que desinforma por oportunidade. A ministra Marina Silva, na entrevista que nos concedeu ainda há pouco, falou de gente que, lá no Sul, filma aquele funcionário exausto da Defesa Civil, aquele militar tirando seus cinco minutos de descanso após horas de trabalho, e joga no ar. “Olha, não estão fazendo nada.” Essa pessoa não é um profissional da desinformação. É um oportunista, alguém que não gosta de um governante ou doutro e quer causar dano. Por fim, tem a pessoa que não é nada, é só uma pessoa mal-informada e com um viés contra um grupo ou outro gigante. Interpreta mal o que vê, já seguindo seu viés, ouve uma informação pela metade, recebe um vídeo que não sabe nem de onde veio, e bota na rede explicando tudo errado. Não está fazendo por mal, mas está fazendo o mal.
Não importa qual é a origem da desinformação. Se foi sem querer, se foi de propósito. O fato é que, ao chegar na rede, mexe com os instintos das pessoas. Dá raiva nelas, dá aquele gostinho de confirmação dos seus preconceitos, aí é uma enxurrada de likes, de comentários, de repostagens. Quando acontece, o algoritmo assume o serviço. Começa a distribuir. Bate na mão de influenciadores grandes. O desastre começa a ser montado.
Por isso que o debate sobre liberdade de expressão, direito a criticar o governo, não se mistura com o da desinformação. O problema não é deixar ou não as pessoas falarem. O problema é que, ativamente, o algoritmo escolhe desinformação perante informação. O problema não é liberdade de falar. É por que essas grandes empresas têm o direito de escolher o que será visto por milhões e o que será escondido?
Não é só a tragédia ambiental que vai acontecer de novo. Com ela virá outra enxurrada de desinformação. Enquanto não regular, vai continuar acontecendo. E continuará ameaçando a democracia.