A tragédia gaúcha é de direita e esquerda
Quando vai cair a ficha de que as mudanças climáticas são reais? O que está acontecendo no Rio Grande do Sul não é normal. Uma capital brasileira, uma das capitais mais ricas do Brasil, submersa porque a lagoa Guaíba subiu o nível e não desce. Não consegue escoar a água para o Atlântico com a mesma velocidade em que chega. Estamos na quarta-feira e mais regiões de Porto Alegre seguem sendo inundadas. Não parou ainda. Mais de duzentas mil pessoas desabrigadas. Cem mortos.
O fato de que é a capital de um estado rico é importante. É mostra de que não seria diferente se fosse em São Paulo ou no Rio de Janeiro. É mostra de que dinheiro não protege. Não estamos preparados. Vocês imaginam uma situação de metade da capital paulista submersa? Tivemos, o quê, um quarto, um terço de São Paulo sem energia elétrica no verão? Por quê? Porque a companhia de energia não aguentou o pico de aparelhos de ar-condicionado ligados durante. A gente pode não pensar nisso como emergência climática, mas é a mesma coisa.
Vai acontecer de novo no segundo semestre. Alguma coisa. Vai acontecer de novo quando o verão chegar. Quando chegou à Baía de Guanabara pela primeira vez, Nicolás Barres, o piloto da frota francesa liderada pelo cavaleiro de Villegagnon, escreveu para um amigo. Era janeiro de 1550. “Aqui chove todo fim de tarde e, de dia, faz o dia mais bonito do mundo.” Eu vivi nesse Rio de Janeiro. Adulto, inclusive. Os verões eram assim. Foi uma delícia ter dezoito anos, ter vinte e poucos naquele Rio de Janeiro. Aqueles dias de praia e céu azul, azul, aí no fim do dia batia um vento Sudoeste e vinha uma chuva de fim de tarde que dava uma refrescada. Lavava a alma e subia o cheiro de terra molhada. Aí, lá pelas oito da noite, passava.
Claro que tinha toró. Janeiro sempre teve uns picos de duas, três semanas de chuva. Início de novembro e meio de janeiro, outra semana de chuvas em fevereiro e, claro, as águas de março. Variava uma semana, duas, mas as coisas tinham ritmo. Mesmo as tragédias tinham um ritmo. As cheias eram sempre nos mesmos lugares, sempre tinha uma encosta de morro que descia. E não é de hoje, não, tá? José de Anchieta descreveu deslizamento de morro no Rio dez ou quinze anos depois de os franceses terem ido embora. Estou falando do Rio porque é a minha terra. Vocês conseguiriam, se forem bons observadores, descrever o ritmo da terra em que vocês se criaram. Como é a luz de setembro e a luz de maio, as mais bonitas do ano, como é quando chove e como é que quando faz sol. Como são os ventos. O que cada vento significa. Em que época do ano o sol bate de um jeito que a gente precisa de óculos escuros. Todo lugar tem um ritmo, tem seu tempo, as sístoles e diástoles do nosso convívio com o planeta.
Só que mudou. O primeiro livro de história que escrevi foi sobre como eram Rio e São Paulo logo após as duas terem sido fundadas. Pobres que só, o dinheiro ficou todo no açúcar do Nordeste no primeiro século de vida das duas cidades. Eu fiquei profundamente comovido lendas as cartas que as pessoas escreviam daqui e de São Paulo nos 1500 e nos 1600. Porque eu conhecia as duas terras. As cidades que eles descreviam, umas vilazinhas, eram completamente diferentes. Mas cada janeiro, cada fevereiro, cada março do qual eles falavam, quando citavam que estava quente ou que chovia ou que não sei o quê acontecia, eu percebia ali as duas cidades que eu conhecia tão bem. Vivas. Iguais. O que faz um lugar ser vivo é perceber este ritmo que se repete ao longo dos tempos. Estávamos a quatro séculos de distância vivendo o mesmo lugar. Esse livro foi lançado tem menos de quinze anos.
Não é mais o mesmo lugar. Mudou. Foi de um mesmo jeito por 450 anos e não é mais. Mudou nos últimos dez anos. A terra está doente. Vai mudar mais. E, politicamente, a gente está discutindo isso tudo errado. Porque o governador fulano mudou a lei X, porque o presidente beltrano fez não sei o quê, o deputado, o senador. A gente vai começar a conversar a sério quando? Tem de fazer duas coisas, e o mais rápido possível. Sair plantando árvore por toda parte. E parar de jogar carbono na atmosfera urgentemente. Vai continuar morrendo gente. Cidades vão seguir sendo destruídas. Isso tem preço em dinheiro, em vidas, em dor.
Tem uma gente achando que o problema é de negacionista de direita. Quem dera fosse tão simples. Vamos começar a falar a sério quando? Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Olha, a gente aqui na redação está com três perguntas. São as perguntas chave. Quais são as soluções urbanísticas que precisam ser empregadas para que isso não se repita mais? Que tecnologias baratas podem ser usadas agora, neste momento, no Rio Grande do Sul para mitigar o dano? E, por fim, quais as possibilidades de recuperação depois da tragédia? Estamos falando com gente boa, aqui e fora do Brasil, muita gente aqui, tá? Vamos contar tudo na edição de sábado do Meio. Você já assina? Assine. Ajude a sustentar o jornalismo independente.
Olha, a mentira morre no escuro.
E este aqui? Este é o Ponto de Partida?
Quer entender o tamanho do problema? Toda a bancada gaúcha, todos os deputados federais. Na farra dos deputados federais com o dinheiro de emendas. Quantos pediram dinheiro para estudo, só estudo, tá? Estudo do que fazer para se precaver de cheias? Uma deputada federal. Fernanda Melchiona, do PSol. Vocês acham que os outros estados são diferentes? Não são. Bancada gaúcha do Senado. Os três senadores. Seu principal projeto conjunto é para prorrogar os subsídios para a indústria do carvão mineral no Estado. Carvão mineral é pior do que petróleo. É a pior fonte de energia que existe. De todas.
E estão lá, juntos, os senadores gaúchos. Carlos Heinze do PP. Do Progressistas. Hamilton Mourão, do Republicanos. O vice-presidente de Bolsonaro. Claro, né? Onde mais ele poderia estar. E Paulo Paim. Do PT. Partido dos Trabalhadores. Juntos.
Vocês estão entendendo o tamanho do buraco? Um dos principais projetos de moradia popular do PT. Minha Casa, Minha Vida. Incentivo para que empreiteiras construam condomínios populares na periferia das cidades. Longe dos Centros. Botar gente bem longe, de forma que precisem fazer longas viagens de ônibus para o trabalho. Enquanto todo o urbanismo contemporâneo está falando que o certo a fazer é adensar as cidades. É pegar os centros das cidades, com tantos prédios vazios, retrofitar e trazer as pessoas para que morem perto do trabalho onde o transporte é mais diverso, em geral sobre trilhos, onde dá para fazer muita coisa a pé.
Preciso falar sobre perfurar poço de petróleo na foz do Amazonas? Passamos metade do ano passado falando disso. Vamos falar de Belo Monte, a usina destrutiva na Amazônia, que empobreceu uma região gigante e ainda hoje não consegue entregar um quarto da energia que prometia?
Claro, existem os negacionistas. Existe a turma que quer derrubar a Amazônia pra tirar ouro. Existe o bolsonarismo. Quando falamos de clima, tem coisa muito pior. Tem o horror. Mas um dos problemas de ter fascista no meio do jogo é que aí, na comparação, qualquer outro pode posar de mocinho. Se fizesse o bolsonarismo desaparecer, hoje, ainda assim nosso retrato não estaria bom.
A gente precisa começar a plantar árvore e precisa parar de usar combustível fóssil. Reflorestamento é mais fácil do que o problema da energia, e nem para isso a gente consegue mobilizar o Brasil inteiro.
Porque o problema não são os políticos, não é? O problema somos nós. Isto aqui é uma democracia. Políticos respondem a pressão popular. E a pauta ambiental não mobiliza ninguém. Os maiores influencers não são os ambientais. As pessoas gritam com prefeito que quer fazer ciclovia, atacam quem quer taxar saco plástico, ninguém cobra coleta seletiva.
Não vai ficar melhor. Vai ficar pior. Vai ser caro resolver. É muita obra que vai ser necessária. Não é só no Rio Grande do Sul. Mais gente vai morrer, mais gente vai perder suas casas, seus negócios. Vejam bem, vai fazer uma semana. O alagamento de Porto Alegre e muitas outras cidades está aumentando, não está diminuindo. Isso pode durar mais dias. Pode, na pior das hipóteses, durar mais semanas.
Será, em danos materiais, possivelmente a maior tragédia da história do Brasil. E não vai demorar muito para ser ultrapassada por outro. O problema de acusar os políticos do grupo x ou do grupo y, de achar que o problema é ideológico, é que isso dá o conforto de acreditar que tem vilão na história. São todos os grupos políticos. Tem bolsonarista, tem tucano e tem petista no meio do problema. Todos os espectros políticos são mais problema do que solução.
Alguma hora, o nível de água vai baixar no Rio Grande do Sul. Aí vai acontecer o quê? Nós vamos nos esquecer? Vamos abandonar tudo? Uma turma vai voltar a dizer que tem de derrubar floresta, outra que precisa cavar petróleo porque os outros também fazem, a terceira vai dizer que a indústria local de carvão precisa ser salva. Que não é assim, de repente, que vamos resolver a coisa. Que vai demorar.
Hoje é com os gaúchos. Amanhã é comigo. Ou com você. Vai acontecer de novo.