Existe “bolsonarismo moderado”?

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Meu amigo Joel Pinheiro da Fonseca fez uma provocação, na coluna dele da segunda-feira na Folha de São Paulo, que devia ser encarada com mais seriedade. “Precisamos de um bolsonarismo moderado”, ele diz. Claro que a internet caiu em cima dele. Imagina se não ia.

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Bolsonarismo moderado é um oxímoro. Aquela figura de linguagem em que duas palavras de sentidos contraditórios são juntadas. Um molhado seco, um quente frio, ou bolsonarismo moderado. E, no entanto, o Joel tem toda razão na coluna dele. Só que pra chegar a essa conclusão, fazer esse raciocínio, precisamos enfrentar três questões. Três passos. Primeiro temos de definir o que é o bolsonarismo para explicar por que uma versão moderada não tem como ser. Daí, temos de compreender melhor o estado em que a direita está no Brasil de hoje. Aí sim, por que, apesar de não haver bolsonarismo moderado, ainda assim o Joel tem razão.

Como? Bem, antes de tudo, o bolsonarismo não é uma ideologia. É um movimento. Isto não quer dizer que não exista uma ideologia envolvida nisso, mas a ideologia é bastante mais antiga do que Jair Bolsonaro.

Qual a visão de Brasil que o ex-presidente representa? Vocês sabem. Conhecem. Vamos descrever. É mais agro do que cidade. O coração econômico do Brasil de Jair Bolsonaro é o agronegócio. Mas não só, não é? Tem outra obsessão que ele sempre manifestou com muita clareza. Riquezas minerais. Garimpo. Ouro na Amazônia, claro, mas também lítio e aquela velha obsessão do Eneas Carneiro, o nióbio. Então falamos de um Brasil ideal fincado no agro e no garimpo. Nos discursos, raramente aparece uma economia mais urbana. O que aparece forte é a ideia de domínio da mata selvagem pelo homem, que a controla, a derruba para produzir riqueza. A riqueza nasce da mata derrubada. A mata, de pé, não é riqueza.

O que mais podemos falar do Brasil ideal de Bolsonaro?

Uma imensa preocupação com valores familiares e uma visão bastante hierarquizada de como família funciona. Estamos falando aqui de um casamento heteronormativo, o homem está no comando, depois dele a mulher e então as crianças. Pela própria maneira como ele se relaciona com os filhos, a gente percebe que a vida toda circula ao redor da família. É uma família meio negócio, está todo mundo no mesmo ramo. Se você nasce na família e é homem, você se junta à firma. A família é o centro da vida, a família organiza a vida.

Mas e num sentido mais amplo? De onde vêm os valores? No discurso, claro, não na prática. De onde vêm os valores éticos e morais que norteiam a ideia bolsonarista? Da religião. No Brasil ideal do bolsonarismo, não é um Estado laico que organiza a vida das pessoas. É a religião. Princiaplmente o cristianismo, principalmente as igrejas evangélicas. E, claro, tudo é em função da pátria. Essas peças, Deus, pátria e família, elas formam uma unidade central que dá a ideia do que deve guiar o Estado.

Vocês reconhecem que Brasil é esse? Porque este Brasil existiu, tá. O Brasil já foi exatamente assim como Brasil com o qual Jair Bolsonaro sonha. Em que momento da história a economia era baseada no agro e no garimpo, a família era muito hierarquizada, os filhos homens sempre entravam no negócio do pai e a Igreja organizava a vida civil da população? É o Brasil Colônia, gente. Era exatamente assim. Que homem na Colônia impunha sua vontade à terra? O bandeirante. E, claro, como os bandeirantes tratavam os indígenas? Como Bolsonaro os tratava? Índio tem de sair da aldeia e se adequar à, boto aqui entre aspas, “civilização”.

Quando falamos que Bolsonaro não é conservador mas sim reacionário, é disso que se trata. Ele não deseja que as mudanças sejam lentas, ele não deseja preservar o país como ele é. Um conservador seria assim. Bolsonaro, não. Ele quer dar uma guinada para trás, para um país que existiu há dois séculos e meio, três. Esta é a definição pura e simples de reacionarismo.

Mas há outra característica neste tipo particular de reacionarismo que Bolsonaro defende. Vocês lembram dos tuítes do Filipe Martins, que vivia citando slogans dos cavaleiros cruzados, que falava da expectativa de um grande levante popular que conduziria Bolsonaro ao poder? Meio que o 8 de Janeiro de 2023 foi um ensaio disso, né? Uma versão mambembe. Trata-se de um tipo raro de reacionarismo pois ele é também revolucionário. Ele imagina uma revolução popular que recriaria o Brasil nos moldes de um passado remoto.

Quando houve, na história, um reacionarismo revolucionário? Qual o único movimento, na história, que era simultaneamente reacionário e revolucionário? Ora. Claro. O fascismo. O fascismo italiano se instaura numa revolução, com milícias na rua se impondo cidade a cidade com Mussolini no comando até atingirem o poder com o objetivo de recriar do zero o Estado à imagem da antiga Roma. O nazismo se instaura numa revolução igualzinho. Milícias armadas nas ruas alemãs que vão ganhando espaço até que, intimidado, o establishment alemão põe Hitler no comando e ele imediatamente refunda o Estado com simbologia viking. Exatamente como acontece em revoluções, o Estado é recriado do zero pelos fascismos que chegam ao poder.

Não estão convencidos? Tudo bem. O Brasil teve um movimento fascista importante naquela época. Era o integralismo, cujo líder era um político paulista chamado Plínio Salgado. Qual era o Brasil ideal do Plínio? Agronegócio e exploração mineral, na época mais petróleo do que nióbio, mas não faz diferença. É o mesmo princípio de explorar as riquezas da terra. O brasileiro ideal do Plínio era o caboclo, o homem do campo, não o homem urbano, o homem que impunha sua vontade à natureza. Plínio celebrava os bandeirantes. Se há uma diferença relevante, e há, é que o Plínio era católico pra cacete. Então naquela época era Igreja Católica, hoje são os evangélicos. Mas a religião, uma religião cristã, norteava a vida civil.

Não tem rigorosamente nenhuma diferença entre o Brasil ideal do Plínio e o Brasil ideal do Bolsonaro. É por isso que, do ponto de vista da ideologia, Jair Bolsonaro não cria nada de novo. Ele ecoa um conjunto de valores, uma ideia de Brasil, que já estão no nosso caldo cultural há mais de um século. Se chama fascismo, gente.

Vejam que o que eu não estou fazendo, aqui, é usar o termo fascista como uma ofensa barata de redes sociais. Não é nada disso. Estou usando fascismo como definição. O bolsonarismo não é uma ideologia, é um movimento, e já vamos chegar lá. Esse movimento é uma novidade na política brasileira, nunca houve antes algo como ele. O bolsonarismo. Mas, do ponto de vista ideológico, aí não. Já houve e nunca deixou de existir. O bolsonarismo é fascista. E, não, não existe fascismo moderado. Não tem como haver. A natureza do fascismo é ser extremista. É estar na ponta mais radical e violenta do espectro da direita.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Um movimento não é um partido. É uma onda, uma reunião de pessoas que comungam de um mesmo propósito. Ele em geral não é pesadamente organizado mas confere uma identidade. As pessoas se identificam umas com as outras por fazerem parte deste ajuntamento que, sim, tem uma ideologia. Neste sentido o bolsonarismo é um movimento novo que encarna uma ideologia velha. Mas este é um movimento muito forte. Muito grande. E representa, concretamente, algo entre 25 e 35% dos votos brasileiros.

A gente já falou sobre isso, mas vamos voltar à ideia do Joel. A ideia de que precisamos de um “bolsonarismo moderado”. O que aconteceu com os políticos da direita que renegaram Bolsonaro? Que o enfrentaram? João Doria. MBL. Janaína Pascoal. Joyce Hasselman. Todo mundo ou acabou politicamente, ou ficou muito menor do que era. Os garotos do MBL teve um tempo que meio que sugeriam que haviam liderado o movimento que levou ao impeachment da Dilma. E, olha, de fato eles punham carro de som na rua e multidões se juntavam. O MBL estava no grupo que se movimentou para pedir o impeachment de Bolsonaro e os caras encolheram pacas.

Não adianta. Se você é um político de direita e ataca Bolsonaro, não vai passar de deputado federal. Não se elege governador, muito menos tem chance na disputa pela presidência. É o que é. Um político de direita, no Brasil de hoje, se deseja alçar voos mais altos, precisa sinalizar de forma positiva para o bolsonarismo. Por quê? Ora, porque é Bolsonaro quem controla a grande parte dos votos de direita no país. Ele controla porque os eleitores dão a ele este poder.

Antes de termos políticos de direita radicalizados, nós temos um eleitorado de direita radicalizado. Bolsonaro se tornou líder porque uma parcela do eleitorado queria alguém representando este pacote de ideias. Uma parcela relevante do eleitorado brasileiro se fascistizou.

Qual é o ponto aqui? Quando as pessoas dizem que, se subiu no palanque de Bolsonaro, precisa cortar. Que se posou para foto com Bolsonaro, precisa cortar. O que estamos dizendo? Estamos dizendo, em essência, que é preciso limar do debate público toda a direita.

Pois é, a gente já vem conversando sobre isso. A barra está alta demais. Existe uma direita moderada no Brasil. Só que esta direita moderada, para ter chance de se eleger, não pode condenar o bolsonarismo. Porque senão perde. Mais do que isso, ela precisa acenar para o bolsonarismo. Flertar com os signos do bolsonarismo. A gente não vai fugir deste paradoxo. Precisamos de mais políticos da direita normal, democrática, acenando para Bolsonaro e ocupando os espaços de poder que cabem à direita. Para, depois, começar a desradicalizar o eleitorado.

Não são bolsonaristas de fato, no sentido de que não comungam da mesma ideologia de Bolsonaro, mas precisam fazer o papel. E como a gente identifica essas pessoas? Pois é. Temos um problema. Mas o ponto fundamental é que nem todo mundo no palanque com Bolsonaro é fascista. A escolha é agradável? Não. Não é. A escolha é fácil? Não, não é. Mas acreditar que limando a direita vamos ter uma democracia é ilusão. A gente precisa defastiscizar um eleitorado que não va votar na esquerda mas que pode, aos poucos, ir abraçando políticos de uma direita que não é fascista.

Esses políticos não vão crescer condenando Bolsonaro. Não hoje.

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