Com quem dá para conversar na direita?
Ontem fui ao cinema assistir Guerra Civil. Vocês já viram? Kirsten Dunst, Wagner Moura. Olha, é um filmaço. Na verdade, ele é completamente diferente do que eu esperava encontrar. A gente não costuma esperar, num blockbuster de Hollywood, um filme que seja tão fiel à teoria política. E tem muito a ver com o tipo de conversa que precismos ter. É um filme violentíssimo, duro de ver às vezes, mas não se enganem. É, o tempo todo, um filme sobre política. E cumpre o papel fundamental de toda história distópica. É um alerta. Um aviso de cuidado. É assim que esse caminho termina.
E nós estamos nesse caminho. Não só os americanos. Nós. Aqui. Também. Sair deste caminho exige um tipo de maturidade que se perdeu no debate público. A coragem de conversar.
Mas calma que estou me adiantando. Ao filme. Guerra no território dos Estados Unidos. A gente já viu trocentas vezes esse tipo de cena, né? As grandes cidades atacadas, conflito aberto. Só que nesse não tem aquelas coisas que os americanos sempre fazem. As explosões espetaculares dos grandes marcos, a Estátua da Liberdade, o Monte Rushmore, a Casa Branca. É claro que dá para entender. Ficção serve pra isso. Pra gente treinar os traumas sem precisar vivê-los. Só que este filme não é nada disso. Nova York está em guerra aberta, a Virgínia está em guerra aberta, as cidadezinhas estão em guerra. Washington está cercada. Só que é o tempo todo guerra de verdade. E guerra de verdade não é sobre grandes explosões, é sobre pequenas explosões. É, principalmente, sobre tiros o tempo todo, tiros de repente, tiros que você às vezes nem sabe por que estão atirando. As mortes são de verdade. Não são coloridas, são de repente. O choque da guerra está lá.
Mas o que está mais é outra sensação. É uma coisa que vai para além do ódio, sabe? É uma secura. É aquele ponto em que as pessoas já se veem tão diferentes umas das outras, que o que fica é um nada. A expressão certa não é essa. Não é que as pessoas fiquem indiferentes, embora algumas fiquem. É que você vai ficando tão brutalizado pelo convívio direto com a morte que as emoções afloram pouco e, quando afloram, elas vêm numa intensidade menor. Isso quando você é um tipo de gente, né? Porque tem outro tipo de gente, um para quem o que fica é total indiferença pelo sofrimento do outro, mesmo. E, quando isso bate, num grupo ainda menor vem um sadismo. Em toda guerra, em todo conflito armado, isso sempre acontece. O sadismo aflora numa parcela das pessoas. Quando há morte por todo lado, a punição para de ocorrer. E isso é uma licença para quem deseja experimentar a sensação de matar. Para alguns aquilo dá prazer. A gente já viveu isso. Durante a Ditadura Militar. A permissão de ser perverso.
O filme mostra os Estados Unidos em guerra civil. Hoje em dia. Ninguém explica exatamente o que aconteceu, mas o presidente ali tem lá um quê de Donald Trump. O fato é que os exércitos dos estados estão avançando sobre Washington. As pessoas, em essência, perderam a noção do que é ser parte do todo. Do que as une. Do que é ser americano.
Há uns anos a cientista política Barbara Walter lançou um livro chamado Como as Guerras Civis Começam e Como Impedi-las. Foi publicado aqui pela Zahar. Guerras civis não se anunciam. Elas não começam de repente. Pelo contrário. Começam aos poucos. O processo se inicia com a formação de facções no espaço político. E faccionalização não é a mesma coisa que polarização.
Não, eu não estou dizendo que os Estados Unidos, ou mesmo o Brasil, estejam em risco de entrar numa guerra civil. Mas estão, os dois países, na primeira fase de um processo que, caso continue pelos próximos anos, pode sim levar a uma guerra civil. É importante entender isso. Este filme não foi feito à toa. Assim como não é à toa que o Wanger Moura veio lançar o filme aqui e saiu dizendo que precisamos voltar a conversar. Pois é. Precisamos mesmo. E não adianta ter a ilusão de que dá para escolher com quem conversar.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Num ambiente político polarizado, duas forças dominam o debate público. As eleições costumam acontecer sempre no ao redor delas. São sempre aquelas duas forças que têm chances de vencer. Um ambiente dividido entre duas facções é assim com uma diferença. Os grupos políticos param de falar com o outro lado. Consideram o outro lado tão intolerável que falam apenas entre si.
Vamos fazer um teste? Se você é uma pessoa de esquerda, cite um líder político de direita importante que você respeite. Respeitar não é votar. Mas, se essa pessoa for eleita presidente da República, vá, não é o fim do mundo. A ideia é a seguinte: um líder de direita em quem um eleitor bolsonarista votaria com tranquilidade, mesmo que não fosse seu favorito. Mas um eleitor bolsonarista precisa reconhecê-lo como fazendo parte de seu espectro. E precisa ser um líder mesmo, um governador, prefeito de capital importante, senador. Presidente de partido. Ex-ministro.
Imaginou um nome desses? Se imaginou, ótimo. Você vive no Brasil da polarização. Se não consegue imaginar um nome destes, você já vive num país dividido em facções.
O teste funciona rigorosamente do mesmo jeito para o outro lado. Você é de direita? Imagine um líder de esquerda, alguém que o eleitor de Lula votaria com tranquiliade e que não seria o fim do mundo se você o visse na presidência. Mesmas regras.
Na semana passada, eu citei dois líderes da direita, dois grovernadores. Ronaldo Caiado, de Goiás, e Ratinho Júnior, do Paraná. Políticos claramente de direita. Caiado, aliás, tem um longo histórico como líder da direita brasileira. Os comentários, por aqui e pelas redes? Ambos de extrema direita, ou no mínimo tanto à direita que já estavam chegando lá. Eles sobem em palanque com Bolsonaro? Sobem. Ou, ao menos, já subiram. Jair Bolsonaro controla algo entre 20 e 30% dos votos brasileiros. Qualquer político de direita que denuncie Bolsonaro, hoje, pode ser herói, pode ser corajoso, mas não se elege para nada além de deputado. Cobrar afastamento total de Bolsonaro, hoje, produz um só efeito. Diminui a quantidade de pessoas de direita em posição de liderança com quem é possível conversar.
É claro que é muito confortável sentar com o celular na mão, deslizar os dedos pelo Twitter, e sair denunciando quem se aproxima dos impuros. Não ter qualquer tolerância com quem já esteve a um metro de Jair Bolsonaro. Mas o fato é que o sujeito tem votos e, numa democracia, ter votos produz consequências. Quem precisa de voto ou se aproxima de alguma forma de quem tem voto ou não ganha.
Não é possível, hoje, chegar a uma posição de liderança na direita sem ter algum tipo de proximidade com Bolsonaro. Mas proximidade não quer dizer ter participado do planejamento de um golpe de Estado. Não quer dizer ter insuflado violência contra os três poderes. A gente precisa descobrir algum critério que dê para separar, na direita, com quem é possível conversa e com quem não é.
Por que Bolsonaro tem votos? Bem, às vezes tenho a impressão de que, quando as pessoas de esquerda imaginam alguém de direita, um eleitor de Bolsonaro, pensam numa pessoa branca, de classe média, em algum lugar do Centro Oeste, barbaramente preconceituosa. Mas não pensam na senhora negra, mãe solteira, evangélica, preocupadíssima com o futuro de seus dois filhos. Fazendo o possível e o impossível para que cheguem à faculdade. Ou talvez até pensem nessa senhora e, de repente numa leitura marxista, a considerem manipulada, alienada. Alguém que se descolou dos interesses de sua classe, que não sabe quem realmente a defende. Aí, não percebem como a igreja traz ordem na vida real. Traz paz, companheirismo, uma rede verdadeira de solidariedade e de valores, construída por pessoas que vivem as dificuldades reais, vivem o medo de perder os filhos pro tráfico, de não conseguir sustentá-los na escola. De mantê-los, quando a adolescência chega, no eixo, apesar das tantas tentações que podem desviar adolescentes num bairro onde a maioria está condenada a se perder de uma forma ou de outra. Pela tentação do tráfico, por uma bala perdida. Aí chamam a moça de reacionária, de fascista, e, não, desculpe, ela entende melhor sua vida do que o militante de Twitter com foice e martelo pixelizado ao lado do nome.
Com quem é possível conversar do outro lado? Porque com alguém precisa ser. Quando partimos do princípio de que conversas são impossíveis, de que com essa gente conversas não podem ser toleradas, estamos falando dos líderes que representam metade da sociedade brasileira. Quando nos dividimos em facções, vamos aos pouquinhos deixando de ver as pessoas da outra facção como gente que merece respeito. Essa coisa vai seguindo até o ponto em que vamos, e isso não é de repente, vamos desumanizando os adversários. Que deixam de ser adversários e viram inimigos.
Um dia, a gente começa a ver pessoas armadas nos encontros políticos. Aí tiroteios começam a ficar comuns. A gente flertou com isso durante as eleições, não é? Vai ser assim de novo em 2026? É quando vai ficando menos esporádico que entramos na zona de risco.
A ameaça à democracia brasileira não vem da esquerda. Não vem do presidente Lula. A ameaça à democracia brasileira vem do bolsonarismo, vem da extrema direita. Só que a esquerda não é inocente neste processo se ela começa, também, a se tornar uma facção em todo intolerante com o outro lado. Se ela perde a capacidade de distinguer extrema direita de direita de centro direita. Porque tudo isso continua existindo.
A gente não vai escapar de voltar a conversar. Ou voltamos a conversar, ou a democracia se vai. Porque democracias são feitas de conversas. Esta é a definição do regime. E a gente não escolhe com quem conversar. A gente conversa com quem o outro lado escolhe. Não tem só Bolsonaro. Há outros líderes fazendo jogo de equilibrista.
Então com que líder de direita a conversa é possível? Quanto mais líderes de direita estiverem bem-vindos à mesa, mais rápido o bolsonarismo acaba. É preciso fazer o movimento.