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Porsche, Operação Verão e democracia

Você quase certamente viu o vídeo do Porsche atingindo o Sandero em São Paulo. É difícil imaginar que alguém dirija um automóvel, seja ele um Porsche ou um Gol Bolinha, naquela velocidade, numa via onde o limite é de 50 quilômetros por hora, sem no mínimo intuir que esteja colocando alguém em perigo.

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A investigação ainda não está completa e a exata velocidade em que o empresário Fernando Sastre de Andrade Filho trafegava não foi auferida. As câmeras mostram seu Porsche, avaliado em mais de R$ 1 milhão, zunindo e se chocando no Sandero de Ornaldo da Silva Viana. O motorista de aplicativo morreu.

Fernando teria sofrido um leve ferimento na boca e, com sua mãe, foi liberado do local do acidente pela Polícia Militar. Mais de 36 horas depois, apresentou-se a uma delegacia. A Justiça disse não haver evidências suficientes para uma prisão temporária.

Enquanto era colhido o depoimento de Fernando, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo anunciava o saldo da Operação Verão no litoral Paulista.  Desde sua deflagração, em dezembro de 2023, foram 1.025 presos, além de mais de 2 toneladas de drogas e 119 armas apreendidas. E 56 mortos. Somada à Operação Escudo, imediatamente anterior, a ação da polícia na Baixada Santista deixou 80 mortos. Três policiais também morreram.

E não demorou para que as redes sociais fossem inundadas de comparações entre a conduta da Polícia Militar de São Paulo em cada caso.

É claro que nosso instinto inicial é o de já querer a condenação instantânea do empresário do Porsche. Aliás, muitos casos desses acabam em linchamentos — sendo o motorista rico ou não, diga-se. A defesa de Fernando usou esse como um dos argumentos para justificar a evasão do rapaz do local do acidente. Mas vale ressaltar que a mãe de Fernando, que o retirou da avenida Salim Farah Maluf e disse aos policiais que o levaria a um determinado hospital, não o levou. E nenhum dos dois atendeu o telefone depois disso.

De qualquer forma, o fato de o moço ter sido liberado com tamanha facilidade, sem realizar o teste do bafômetro, mesmo com uma vítima potencialmente fatal é o que chama a atenção e desperta a sensação de que ele pode ter sido favorecido por sua condição social.

E isso, naturalmente, nos remete à noção de que houve uma injustiça.

A comparação com o tratamento dado pela PM nas favelas é automática. Mas, cá entre nós, precisa de contexto, não pode ser simplificada. Até pra gente entender as consequências políticas disso.

Eu sou a Flávia Tavares, editora executiva do Meio. Meu papel é o de cuidar do conteúdo premium, aquele que a gente produz para aqueles que se dispõem a pagar 15 reais por mês. E isso é o que a gente faz: dar contexto, procurar explicações mais profundas para problemas complexos. Não adianta resumir tudo só em 280 caracteres, em ideias rasas, pra virar meme. Claro que isso também tem sua função. Mas jornalismo de qualidade precisa se propor a mais. Na Edição de Sábado passado, por exemplo, trouxemos uma longa entrevista com o historiador Carlos Fico sobre o golpe de 1964 e a cabeça dos militares hoje e sempre. Tem coisas ali que você não encontra em outros cantos e que certamente desafiam o senso comum. Assine e confira!

Operação Verão é um tremendo eufemismo que faz parecer que o Estado se organizou para deixar as praias como numa propaganda de cerveja, repletas de pessoas felizes, seguras, bronzeadas. Mas não.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, chefiada por Guilherme Derrite, está em guerra no litoral paulista. Começou com a Operação Escudo, em julho de 2023. Numa patrulha no Guarujá, o soldado Patrick Reis foi baleado e morto por traficantes. Reis era da Rota. Derrite foi tenente da Rota e era responsável pela formação de soldados da PM.

Vamos delimitar muito bem as coisas. O tráfico de drogas e o PCC, uma das maiores, se não a maior organização criminosa do Brasil, tomaram conta, sim, da criminalidade na Baixada Santista. O Porto de Santos é essencial na estratégia multinacional do PCC, que sofisticou a tal ponto sua operação que hoje conta com mergulhadores que grudam os pacotes de drogas no casco dos navios. O Ministério Público de São Paulo aponta que o PCC movimenta algo em torno de 60 toneladas de drogas por ano só em navios para a Europa — isso representa cerca de R$ 10 bilhões.

O PCC também é fortemente armado, equipado e tem capilaridade. Então, obviamente, age com violência em todos os níveis: entre seus próprios membros, nas comunidades e contra as forças de segurança.

Pois bem. A morte do soldado Patrick é grave, precisa de apuração e demanda punição. Mas na lógica da PM — e isso nem de longe é “privilégio” dos paulistas — o que ela demanda é guerra. Os policiais militares, em todo o Brasil, são treinados e turbinados incessantemente na mentalidade de guerra. Isso já é óbvio em sua própria natureza militar.

E aqui é válido fazer um parênteses. A formação militar brasileira é essencialmente aristocrática, ou seja, os militares veem como sua função uma proteção patrimonial e às elites do país. Por mais que os militares de baixa patente ganhem mal e venham de famílias pobres, sua orientação é a de prestar serviços aos donos de terras, aos empresários, aos mais poderosos.

Mas a disposição à guerra dos policiais militares vai além. Passa pela noção de que a guerra às drogas ou a qualquer criminoso, ou alguém que se pareça com um criminoso — e aqui entra com muita força a questão racial — é a guerra do bem contra o mal, é de cunho moral.

Não raro, e cada vez mais, se mistura a percepções religiosas. Há relatos, antigos e recentes, de cultos evangélicos em quartéis ou excursões de policiais a templos e igrejas — e eu mesma testemunhei na cerimônia de entrega do título de cidadã paulistana a Michelle Bolsonaro a banda oficial da PM performando música gospel.

Evidente que há zero problema na fé pessoal de cada um de nós, ou na sua ausência, sejamos policiais ou não. O problema é quando essa visão de mundo se institucionaliza. Quando a polícia passa a enxergar uma categoria inteira de cidadãos — os pobres — como inimigos morais, sem salvação.

Isso sempre esteve presente nos grupos de extermínio, desde lá de trás, nas décadas de 1950 e 1960. Por isso, esses justiceiros mataram tantos inocentes. Porque se dispunham a exterminar qualquer morador de favela que “parecesse” perigoso, criminoso.

Eu cobri de perto o caso dos Highlanders, em São Paulo. Quatorze PMs, alguns da Rota, matavam jovens pretos e pardos das periferias do extremo sul da cidade. Dona Terezinha, mãe de Roberto, de 20 anos, não pôde sequer enterrar o filho que fora decapitado por dois PMs.  Ele tinha ido à casa da noiva levar as alianças compradas com o salário de pedreiro no Aeroporto de Cumbica. Os highlanders ficaram famosos por exterminar até uma pessoa com deficiência intelectual. Isso aconteceu na Baixada Santista também.

Quando um soldado da PM é submetido constantemente à ideia de que sua missão é guerrear contra traficantes, que do outro lado está um inimigo imoral, diabólico e que a única defesa possível é seu extermínio — ah, e que ele normalmente é um jovem preto ou pardo —, o estado permanente é o de prontidão para se puxar o gatilho. É o de matar.

Então, uma operação da PM nas favelas onde os traficantes atuam e se escondem acontece com policiais prontos para atirar, sem distinguir muito bem em quem. Notem que o problema não é querer combater o crime organizado, os traficantes — embora, obviamente, esse combate seja mais eficiente e legal quando é possível prender, julgar e condenar os criminosos, em vez de matá-los em ação. Mas é claro que a realidade é dura e violenta e se impõe com frequência.

Aí, o que acontece? A direita sempre usou o discurso de que a esquerda defende os direitos humanos dos bandidos e, com isso, ignora os policiais que morrem. Ou protegem vagabundos. A criminalidade segue crescendo e o discurso vai ficando cada vez mais nessa linha, de que violência só se combate com violência.

O que está sendo relativizado aí é que, do jeito que as operações policiais são conduzidas, morre bandido que atira na polícia; morre bandido que não passou pelo bendito devido processo legal; e morre gente que não é bandido. Morre a Edneia, mãe de seis crianças, que papeava com uma amiga numa praça.

Ainda que seja verdadeira a versão dos policiais, de que naquele momento eles trocavam tiros com homens numa moto, não é aceitável que agentes de segurança do Estado troquem tiros numa região com civis inocentes expostos dessa forma. É inimaginável que isso aconteça num bairro nobre. E não é porque não haja criminosos neles. É porque a polícia não atira, porque distingue com quem está em guerra e quem deve proteger.

A PM não está em guerra com o dono do Porsche. Mas se fosse um Gol Bolinha com um jovem preto, pardo ou até branco no volante, talvez ele não tivesse tido a chance de ser resgatado por sua mãe para tratar um ferimento leve na boca.

De outro lado, a esquerda e os liberais também não conseguem elaborar políticas públicas de segurança capazes de reduzir drasticamente a criminalidade e nem a violência policial. Basta olhar para a Bahia ou para os índices de homicídio nos governos do PT. Também não conseguem convencer que medidas de longo prazo, de distribuição de renda e educação, podem aliviar o problema. Reféns politicamente da pressão policialesca da sociedade, os governantes de centro e de esquerda cedem a medidas populistas também.

Elas sequer são eficientes. Um relatório recente do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma que entre 2007 e 2021 “foram realizadas 17.929 operações pela polícia no Rio de Janeiro. Desse total, 593 operações policiais resultaram em massacres, totalizando 2.374 mortes”. Pois bem, alguém pode dizer que o Rio está hoje mais seguro? Funcionou?

E a mãe da favela vai seguir chorando.

Seja pelo filho assassinado por um PM, seja pelo filho cooptado e assassinado pelo crime organizado, seja pela filha violentada por homens com ou sem farda, seja por não ver a Justiça punindo ninguém com eficiência. Tudo isso tocando dois, três empregos para mal conseguir pagar as contas.

Então, quando ela vê o dono do Porsche respondendo em liberdade, ou quando assiste ao Daniel Alves deixando a prisão, altivo, por pagar 1 milhão de euros depois de ser condenado por estupro, dói demais. Não é que cada indivíduo no mundo não mereça a presunção de inocência e não possa usar todos os recursos legais a seu dispor. É que ela, seu filho e sua filha jamais puderam.

Ela acaba se salvando em sua fé. Perde a confiança na polícia, na política, no Estado. Mas, dependendo de suas escolhas, acaba ouvindo, em seu momento de oração, que a resposta é mais polícia, mais arma, mais força. É um ciclo muito difícil de romper.

A gente fala de democracia pensando em golpe, em STF, em eleições. Forma frente ampla pra deter o fascismo. Une espectros políticos tão distintos quanto a esquerda e o liberalismo. Mas nunca faz isso em nome da mãe da favela, que teve seu filho assassinado pelas costas. Ou da mulher do músico baleado 80 vezes por militares que o “confundiram” com bandido. Ou do catador que foi em seu socorro. Ou do motorista de aplicativo em seu Sandero. Não há democracia possível em uma sociedade onde as polícias estão em guerra contra os cidadãos pobres. Não há.

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