Janja cruzou a linha feio

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A notícia é do jornalista Lauro Jardim, ele a deu ontem, no domingo dia 31. A primeira-dama, Janja Lula da Silva, pressionou o procurador da República Francisco Falcão. Ela o pressionou para que pedisse à Justiça que o jogador Robinho, condenado por estupro na Itália, cumprisse a pena aqui no Brasil.

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O Ministério Público, todos os procuradores, fazem parte do Poder Judiciário. Respondem ao Procurador-Geral da República. São propositalmente independentes dos poderes Executivo e Legislativo. Por quê? Bem, porque alguém precisa ser o advogado da sociedade e tanto o Executivo quanto o Legislativo podem estar entre aqueles que causam algum tipo de dano aos seus interesses. Não são só eles, claro. Empresas privadas também podem ser processadas pelo Ministério Público. Pessoas podem. Mas o fato é que o MP não responde à ninguém

Ninguém no Executivo pressiona procurador. Isso não existe. Isso não se faz. É violar com gravidade a linha que divide os três poderes. Isso é coisa de gente truculenta. Gente que não tem qualquer cuidado com institucionalidade. Que não entende qual o lugar de qualquer um. Pressionar procurador da República é uma agressão à essência da democracia.

Esse cargo, “primeira-dama”, não é um cargo que exista oficialmente. Primeira-dama não ganha saláro. Tudo o que ela faz é voluntário. Não se trata de um cargo administrativo de governo. Ainda assim, ele tem uma institucionalidade. Os trabalhos que primeiras-damas costumam tocar usam verbas públicas. O motivo é que a ação é vista como uma extensão das ações de quem está na presidência da República. Não é assim só no Brasil, não. É assim nos Estados Unidos, é assim na Argentina, em nossos vizinhos em geral. Os americanos dão equipes inteiras às primeira-damas, com chefe de gabinete, assistentes executivos, equipe de assessoria de imprensa. Tudo.

Mas é por isso tudo mesmo que, quando um procurador recebe uma ligação da primeira-dama, quando qualquer um recebe uma ligação da primeira-dama, essa ligação é como se fosse do próprio presidente da República. Ou seja: Janja fez saber a um procurador que ela desejava que seu ponto de vista sobre o caso Robinho seguisse numa linha específica. O que este procurador ouve? É pressão direta da presidência. É saber que, se seguir um determinado caminho, terá portas abertas no Palácio do Planalto. Mas se seguir outro poderá se ver com problemas.

Na essência, na raiz, lá atrás, quando Montesquieu desenhou a ideia de separação entre os três poderes, este era o problema que ele queria resolver. Impedir que este tipo de pressão funcionasse.

Sabe o que é pior? Seguindo o que já é tradição do MP brasileiro, Janja pressionou por nada. O procurador Francisco Falcão já ia pedir para que Robinho cumprisse pena no Brasil. Se a primeira-dama tivesse agido com mais delicadeza, poderia instruir alguém a descobrir qual era a inclinação dele. Nós jornalistas conseguimos esse tipo de notícia, ela certamente conhece alguém que conhece alguém, que conseguiria o cheiro do encaminhamento sem que seu nome precisasse chegar ao cara. Mas não. Ela quis fazer um gesto de força. Por fazer. Por nada.

E fez. Não só violou a regra mais fundamental de uma democracia que é a separação dos Três Poderes. Deu uma arma para a Defesa de Robinho, que agora pode alegar que houve interferência. Deu ainda uma arma para a extrema direita, já tem Carla Zambelli pedindo investigação pelo MP. E, olha, Carla Zambelli pedindo investigação com todo direito, e cumprindo seu papel como deputada federal.

Há mais de ano que a turma bolsonarista vem atacando Janja por sua atuação política. O problema deles é misoginia. Só que Janja está no jogo da disputa de poder palaciano. Faz parte, política é assim. Só que este é um jogo que se joga direito, ou então se leva rasteira. É um jogo, para quem se preocupa com democracia, no qual há regras fundamentais de se seguir.

Janja já atropelou a mais importante delas. Nunca é bom quando gente perto demais da presidência atropela as instituições no exercício do poder. Quando faz isso por nada, o sinal é de que é um exercício de poder para lembrar quem tem poder.

Cheira mal.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Carlos Fico é historiador, professor titular da UFRJ e estuda ditadura militar faz 30 anos. É uma das maiores autoridades no assunto e não tem medo de desafiar alguns consensos acadêmicos sobre como se deu o golpe e como o Brasil pode sair desse eterno repetir das intervenções militares. Ele deu uma longa entrevista à editora executiva Flávia Tavares que já está no site do Meio. Você entende como foi o golpe? Estamos em seu aniversário redondo de 60 anos. Começou em 31 de março, acabou em 2 de abril. Todo assinante premium do Meio tem acesso à entrevista. E não custa quase nada pelo preço dum chope. Pensa nesse como um brinde à democracia.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Sabe quem tinha um cuidado institucional imenso? Dilma Rousseff. A gente não atribui muito isso a ela. Dilma foi uma presidente tão incompetente politicamente, conduziu tão mal o Brasil em um período difícil, que suas qualidades são esquecidas até dentro do PT. Mas, vejam só, nos piores momentos da Operação Lava Jato, todo mundo e mais alguém batia à porta de seu gabinete. O que Dilma foi pressionada para interferir na Polícia Federal ou no Ministério Público, só os mármores do Planalto se lembram.

E nem com ela, nem com seu ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, houve abertura. O pior, neste caso, é que a Polícia Federal responde ao ministro da Justiça e, portanto, à presidência da República. Sabe aquela fatídica reunião do Bolsonaro, gravada em vídeo, na qual ele diz que vai mexer onde for preciso na Polícia Federal para ninguém mexer com a família dele ou com seus amigos? Pois é. Dilma foi exatamente o contrário disso durante a Lava Jato. Não houve interferiência. Os limites institucionais foram seguidos estritamente.

Dilma sofreu um impeachment, gente. E este foi um dos motivos principais que levaram ao Centrão querer botar Michel Temer na presidência. Botar alguém, lá, que iria usar o poder da presidência para tentar segurar a Lava Jato. Ele conseguiu. Já estava no fim, não deu para segurar tudo. Temer era hábil politicamente e, bem, estava habituado a jogar o jogo como costuma ser jogado em Brasília.

O papel da primeira-dama sempre causa escândalo, em geral de forma injusta. Como fica sendo esse cargo que não é cargo, as pessoas sempre cobram. Na tradição era uma coisa mais filantrópica. A mulher de Venceslau Brás e a de Getúlio Vargas gostavam de ajudar a mobilizar gente pra levantar comida, remédios, roupas, para gente pobre ou em grandes tragédias.

A primeira-dama que mudou esse comportamento foi dona Ruth Cardoso. Ela própria era uma antropóloga importante, então entendia a sociedade de uma forma muito distinta. Mas com a lógica da ciência do que da caridade. Decidiu botar de pé um programa fundamental, o Comunidade Solidária, que era técnico. Se organizava em cima de programas que já existiam nos ministérios, tentava reorganizar estes programas. O que veio a ser o Bolsa Família nasceu dali, daquela máquina de organizar a política social do governo.

Dona Ruth, neste sentido, foi uma primeira-dama muito política, mas política no sentido da ação por políticas públicas específicas. Fez um trabalho impecável e, quando Fernando Henrique deixou a presidência, a gente não fala isso o suficiente, uma das obras mais importantes de seu governo aconteceu por conta não dele, mas dela. Uma das obras que está aí, viva até hoje. É o embrião do programa social mais importante da Nova República.

O que dona Ruth fez foi tirar o assistencialismo e botar no lugar programas de transferência de renda direta.

O papel político de qualquer primeira-dama é legítimo. A República pede muito dos parceiros de quem elegemos presidente. Precisam abandonar suas carreiras, porque as chances de conflito são imensas. E porque, com frequência, é do jogo da política que os casais estejam presentes em jantares, em encontros, em toda sorte de momento. Então o marido ou a mulher de presidentes precisam dedicar sua agenda a estar do lado de quem se elegeu. Parcerias políticas nascem desse jogo. Franklin e Eleanor Roosevelt, Bill e Hillary Clinton. Barack e Michelle Obama. Juan e Eva Perón. Néstor e Cristina Kirchner. Claro, Fernando Henrique e dona Ruth. E, sim, Lula e Janja.

Há bons exemplos e há maus exemplos, mas parcerias políticas deste tipo são naturais. Só que tudo muda quando ela sai daquele terreno cercado que são as atribuições do presidente da República. O Brasil é uma democracia liberal onde há independência dos três Poderes. Onde Lula manda, Janja pode dar opinião se quiser. É do jogo. Não pode dar ordens, mas pode dar pitaco e, bem, cada ministro que se entenda com Lula para entender o quanto o pitaco dela vale por ordem sua. É um código que nem sempre é trivial de quebrar, mas repúblicas funcionam assim.

No momento em que Janja cruza a linha, tudo muda. Porque sua autoridade não é sua, é de seu marido. Ele foi eleito presidente da República. Se alguém se sente pressionado por ela, não é dela que vem a pressão. É dele.

A presidência quis pressionar um procurador da República. Se não está claro, hora de ficar. É muito grave.

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