Como se faz um golpe
Foi golpe. Até ontem, a quarta-feira sete de fevereiro de 2024, poderíamos discutir semântica. Se as pessoas sabiam o que estavam fazendo, o quanto a depredação dos palácios dos três poderes são violência contra o patrimônio ou tentativa de derrubar o Estado Democrático de Direito. Poderíamos pegar a minuta do golpe, encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, e dizer que aquilo foi um desmiolado qualquer do terceiro escalão que fez. Poderíamos dar toda sorte de desculpas para quando os generais Augusto Heleno e Braga Netto deixavam o Palácio do Alvorada dizendo pras pessoas aguentarem firme, que coisa boa vinha aí.
Poderíamos propor muitas interpretações, dar muitas voltas, para fingir não ver o que estava claro. Não tem mais como. Agora está documentado.
O que a decisão de hoje do ministro Alexandre de Moraes mostra é que foi golpe. Ela se baseia numa longa investigação da Polícia Federal, seu resultado é devidamente corroborado pela Procuradoria-Geral da República, e levada ao ministro do Supremo Federal Tribunal provoca uma ação. Tudo rigorosamente feito nos parâmetros que a Constituição exige. Polícia investiga, procuradoria faz pedido, juiz toma decisão. Dentro do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro foi planejado um golpe de Estado, grupos foram organizados com missões distintas para executar o golpe de Estado, e se ele não aconteceu devemos a duas pessoas. Anotem esses dois nomes, porque eles são importantes.
O general Marco Antônio Freire Gomes, que era comandante do Exército. O tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, que era comandante da Aeronáutica. Porque estes dois homens não toparam, o golpe não aconteceu.
O Exército estava muito mais contaminado por golpistas do que parecia antes. Fez parte do planejamento do golpe militar bolsonarista o general de Exército Estevam Theóphilo, comandante de Operações Terrestres, o Coter. Deixa eu repetir isso: general de Exército. Quatro estrelas. Membro do Alto Comando do Exército Brasileiro. Tomou parte do planejamento de um golpe militar em 2022. Sim, um golpe militar igualzinho aos tantos que tivemos tantas vezes no passado. Fizeram parte inúmeros Kids Pretos, os militares com o Curso de Operações Especiais. A elite do Exército brasileiro. Sua missão seria prender Alexandre de Moraes e levá-lo para o Comando de Operações Especiais, com sede em Goiânia.
A Polícia Federal se baseou na delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, em uma reunião inacreditavelmente gravada em vídeo na qual Bolsonaro discute detalhes e dá instruções, nas mensagens trocadas por golpistas encontradas em inúmeros celulares.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
É. Hoje é quinta-feira. Não é dia de Ponto de Partida. Mas é, né? Estamos neste exato momento preparando, para a edição de Sábado do Meio, um histórico do golpe que não aconteceu. Como foi o planejamento, o passo a passo. A editora executiva Flávia Tavares está mergulhada nisso. Vai ser um material muito especial. Assine o Meio e compreenda como tudo aconteceu. Mas, hoje, aqui, já dá para darmos uma palinha.
Este aqui? Este é um Ponto de Partida em edição extraordinária.
Os golpistas se organizaram em seis núcleos, cada um com sua missão. O primeiro era o núcleo de desinformação. Precisava criar uma campanha pelas redes sociais e imprensa amiga para desacreditar o sistema eleitoral. O objetivo era fazer que a maior quantidade possível de eleitores tivesse dúvidas a respeito da urna eletrônica.
O segundo núcleo era um de marketing de nicho. Seu objetivo era convencer a maior quantidade possível de militares a aderirem ao golpe. No comando estava o general da reserva Walter Braga Netto, que havia sido candidato a vice de Bolsonaro. Também quatro estrelas, mas esse da reserva. Entre outros, fazia parte dessa trupe Paulo Figueiredo Filho, comentarista da Jovem Pan e neto do nosso último ditador.
Marketing de influencers, igualzinho se faz na publicidade. Descobrir quem no mundo digital fala bem com militares, quais os grupos de WhatsApp importantes de participar, espalhar gente que convencesse a maior quantidade possível de pessoas.
Aí havia o núcleo jurídico, comandado por Filipe Martins, que foi preso nessa manhã. Filipe, o aluno mais influente de Olavo de Carvalho dentro do Palácio do Planalto, tinha dois apelidos. Apelidos dados por seus amigos, tá? Sorocabannon, o Stephen Bannon de Sorocaba. Em homenagem ao estrategista político-digital de Donald Trump. E Robespirralho porque, mesmo sendo jovem, tinha ambição de ser um Robespierre brasileiro e assistir a uma revolução que transformasse o Brasil numa distopia olavista. Sua missão: produzir os decretos necessários a dar uma cara jurídica para o golpe de Estado.
Afinal, o que eles iam dizer é que aquilo não era um golpe. Alexandre de Moraes seria afastado do TSE por ter corrompido as eleições e, em algum momento, novas eleições seriam convocadas. Pois é. Em 1964 também prometiam eleições para 65. Todo golpe tem sempre um lustre de legalidade. É mentiroso, mas precisam passar o verniz na cara.
Aí vinha o núcleo operacional. O objetivo: manter as condições que viabilizariam o golpe. Ou seja, muita gente acampada na frente dos quartéis, manifestações, e mobilização dos Kids Pretos. Tinha kid preto no 8 de janeiro, tinha kid preto nos quarteis, estavam por toda parte. Militares de elite com treinamento financiado pelo Estado brasileiro para conduzir operações, ora, como essa. De criar um clima que permita um determinado tipo de ação.
O quinto era o núcleo de inteligência paralela. Eles acompanharam o ministro Alexandre de Moraes, sabiam por onde andava, com quem e como, todos prontos para o momento de prendê-lo. Espionaram também outros ministros do Supremo. Chegou-se a planejar também a inserção de espiões nas campanhas adversárias. Bolsonaro teve medo de que os espiões fossem descobertos, aí falou que gostaria de tratar isso mais em detalhes com o responsável do núcleo. Quem? Ora, o general Augusto Heleno, comandante da Agência Brasileira de Informações. Abin. Não sabemos o que combinaram a dois.
Por fim havia o núcleo dos oficiais de alta patente. Braga Netto era um, o comandante da Marinha Almir Garnier dos Santos era outro, o general da ativa, membro do alto-comando Estevam Theophilo também fazia parte dessa trupe. Assim como o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. Ex-comandante do Exército. É importante repetir: ex-comandante do Exército. Era um núcleo que supervisionava os outros cinco. Sim, todos militares de altíssima patente.
Planejado por generais, organizado por generais, posto em operação por generais. O nome que damos para isso é golpe militar.
Em uma das mensagens de WhatsApp de Braga Netto, ele é muito claro quando se refere ao general Freire Gomes. O sujeito que comandava o Exército naquele momento e que não topou o golpe. “Meu amigo, infelizmente tenho que dizer que a culpa pelo que está acontecendo e acontecerá é do Gen. Freire Gomes. Omissão e indecisão não cabem a um combatente.” Frase de Braga Netto. Ex-interventor da Segurança no Rio de Janeiro, ex-ministro da Defesa, ex-candidato a vice-presidente de Bolsonaro. Ele foi além, falando sobre os planos pós-golpe. “Oferece a cabeça dele. Cagão.”
Na cabeça de Braga Netto, um comandante do Exército que obedece à Constituição é um omisso, um indeciso perante o combate. Um cagão.
Freire Gomes foi substituído por Lula logo no início de seu governo. Se recusou a tirar uma promoção de Mauro Cid e já havia dificultado a ação da polícia em frente ao quartel-general do Exército após o 8 de janeiro. História tem disso. Foi corporativista e tentou proteger os golpistas. Ainda assim, enfrentou esses mesmos golpistas no momento mais delicado. No momento em que, se houvesse cedido, teríamos assistido a tudo.
Ao quê? Uma tropa de elite localiza Alexandre, prende o ministro, quando isso ocorre o Palácio do Planalto decreta Estado de exceção. Informa que Bolsonaro seguirá presidente até a realização de novas eleições.
Haveria uma revolta popular nas ruas, claro. Ministros do Supremo, a começar por Luís Roberto Barroso, iriam às TVs ou às redes acusar o golpe militar. Talvez tanques fossem postos nas ruas para intimidar. Parlamentares, deputados, senadores, iriam abrir lives. A boa imprensa resistiria. Governos da Europa, dos Estados Unidos e dos países vizinhos diriam não reconhecer o regime imposto aos brasileiros. Muito provavelmente o golpe não duraria muitos dias. Golpes de Estado não duram quando sua legitimidade não é reconhecida. Eles duram quando a sociedade segue tocando sua vida e aceita o novo status quo.
Nós não aceitaríamos. Mas olha o tamanho do trauma? Tudo isso não é uma especulação, um chute. É colheita de testemunhos, trocas de mensagens de Zap, documentos localizados e uma reunião gravada envolvendo o próprio Bolsonaro. Quatro generais de Exército envolvidos, um comandante da Marinha. Se antes havia dúvida, não mais. No Brasil de 2024, uma tentativa de golpe de Estado parece que vai levar muita gente graúda pra prisão.
Neste anos completamos 60 anos do golpe militar que tirou João Goulart da presidência e nos impôs vinte e um anos de ditadura. Se alguém tem dúvidas de que o Brasil melhorou, olha em volta. Ela é capenga, mas é uma democracia.
Evoé, Momo.