Racismo ambiental, pessoas que pariram
Quando, após chuvas pesadas no Rio e em São Paulo, a ministra Anielle Franco falou em racismo ambiental, fiz um comentário rápido no meu Instagram.
Recebi um monte de respostas deste tipo. “É sério que vc não acha correto usar um termo baseado em fatos históricos, apenas pra extrema direita não ficar com medinho? Socorro! Muito triste e decepcionante ouvir isso de vc.” Ou então: “Não é sacar o termo racismo ambiental. É um conceito científico. Sacar é achismo, que não foi o caso.” “Não é uma ideia que foi inventada agora. É um conceito que existe. Não faltam estudos e teses sobre isso. As abordagens climáticas já falam disso há tempos.” “Só soa como lacre pra quem prefere taxar tudo como lacre. É fácil. Não dá trabalho de pensar, nem de escrever.”
Tem várias desse tipo. Na semana passada, o Ministério da Saúde publicou um comunicado sobre o puerpério. Ao invés de se referir a mulheres que tiveram filhos, escolheu o pessoas que tiveram filhos. O raciocínio, claro, é que homens trans podem ter filhos. Eu não entrei nesse debate. Reconhecer que homens trans podem ter filhos é óbvio. Para mim. Mas a polêmica rendeu por dias nas redes e destilou pelos grupos de Zap bolsonaristas numa leitura meio ‘o governo quer acabar com o valor das mães’.
Tem um monte de coisa sobre a qual podemos falar, aqui. Um monte mesmo. Mas vamos começar ignorando todas as opiniões. As minhas, as de todo mundo. A gente, antes de tudo, precisa entender como a conversa se dá aqui na internet. Vale a gente buscar um pouco de Teoria da Comunicação. Um dos caras mais chaves nessa área é um medievalista canadense chamado Marshall McLuhan. Ele tinha um aforismo que todos vocês já devem ter ouvido. A mídia é a mensagem. Mídia é um veículo, tá? O canal pelo qual você recebe a mensagem. Um livro é uma mídia, um programa de TV, um vídeo no YouTube. São mídias. São meios pelos quais a mensagem é veiculada.
O que o McLuhan queria dizer com o meio é a mensagem? Tanto nossa reação emocional quanto nossa reação racional variam de acordo com o meio usado. Um texto em papel puxa mais pra reflexão, um vídeo puxa mais pra emoção, por assim vai. Cada meio tem suas características muito próprias que mudam fundamentalmente a maneira como a mensagem nos chega. Meios não são neutros.
Quer ver uma coisa interessante? A maior parte das respostas que me escreveram sobre o vídeo ignoram por completo o que eu disse. Não respondem à mensagem. Porque estão respondendo ao meio pelo qual veiculei ela. O meio é a mensagem.
As redes sociais têm uma dinâmica bastante particular. Elas determinam as polêmicas do dia. Isto não é neutro. Há um algoritmo que procura dentre os assuntos tratados naquele dia os que vão render polêmicas e investe neles. Pega aquele assunto e põe na frente das pessoas que, o algoritmo sabe, mais provavelmente vão responder com forte envolvimento emocional àquele tema. Vai ter o grupo a favor e vai ter o grupo contra. O algoritmo sabe disso e quer este conflito. Aí, imediatamente, o algoritmo começa a mapear quais respostas geram maior apelo emocional em cada um dos times. Aquelas respostas vão sendo elencadas, vão sendo amplamente distribuídas. Qual o resultado? Mais pessoas começam a repetir aqueles mesmos argumentos. No final do dia, dá para dizer quais são os três argumentos mais populares do time A e quais são os três argumentos mais populares do time B. Dentre as respostas que recebi estão lá os mesmos argumentos que todos nós passamos três dias lendo no Twitter. No X.
Como jogadores deste grande Big Brother que são as redes sociais, a gente vai aprendendo como se faz o jogo. A gente vai percebendo, inconscientemente, quais são os argumentos que devemos repetir que vão gerar mais likes. O que são estes likes? Reconhecimento. Pessoas que já leram aquele mesmo argumento em outro canto, se identificaram, e estão ali, no joinha, no coraçãozinho, dizendo o seguinte: é isso. Conheço esse argumento. Também gosto dele. Tamojunto. Todos nós somos capturados por este jogo.
Aí aparece um vídeo que sai daquele núcleo. Ele não está dizendo que racismo ambiental é bobagem. Ele não está dizendo que racismo ambiental não existe. Ele está dizendo que racismo ambiental não ajuda a convencer ninguém.
Rede social não é um lugar para refletir. É um lugar pra ver um vídeo, ver um tuíte, reagir em menos de um minuto e seguir pro próximo. É isto que o meio quer de nós e é isto que entregamos ao meio. Depois de um dia inteiro, dois, imerso no mesmo tema, está todo mundo já bem treinado. Localizou o assunto. É contra? É a favor? Então tá aqui a resposta para quem é contra. Vamos para o próximo.
É importante entender essa dinâmica. Estamos todos dentro dela. É importante entender porque, olha, o bolsonarismo a compreende perfeitamente e conta com ela.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
O principal ponto a compreender é o seguinte: existe uma linguagem que foi adotada pelo movimento identitário. Essa linguagem já foi assimilada pela extrema direita, transformada em memes, e vai sempre produzir o mesmo resultado. Bem antes do McLuhan, dois matemáticos chamados Claude Shannon e Warren Weaver montaram um modelo de como funciona o processo de comunicação. É uma cadeiazinha.
Temos o EMISSOR. É quem vai falar alguma coisa. Aí ele CODIFICA uma MENSAGEM. Ou seja, ele transforma sua mensagem em texto, em fala, põe em algum formato codificado que permite compreensão da mensagem. Essa mensagem codificada passa por um CANAL. Um vídeo no YouTube, televisão, rádio, email. É o veículo que leva essa mensagem ao RECEPTOR que, evidentemente, DECODIFICA a mensagem. Isto gera um FEEDBACK. Uma resposta. E, em cada um destes passos, há a possibilidade de RUÍDO. A codificação pode ser em termos que o receptor não compreenda, preconceitos podem interferir no processo de recepção, há toda sorte de ruído.
A linguagem identitária, neste modelo, é parte da codificação. E quem produz marketing na direita digital transformou este código em ruído. Ou seja, sempre que você falar em “racismo ambiental”, quem está no Zap da direita vai entender “estão tentando tirar o meu espaço pra dar pro outro”.
Antigamente, isso faz muito tempo, uns dez anos, grupos políticos ouviam pesquisas de opinião e ouviam profissionais de marketing. As pesquisas tinham o objetivo de mapear as preocupações das pessoas. O marketing não estava ali à toa. Compreendia-se que existem maneiras mais eficientes de passar uma mensagem e maneiras menos eficientes. As mais eficientes atingem muita gente, as menos eficientes atingem pouca gente.
Agora, como é que política trabalha isso? Existem muitos jeitos diferentes de fazer política e os objetivos de governos não são os mesmos objetivos da militância. Um dos problemas chave no governo Lula é que muita gente ali dentro não sabe distinguir entre uma coisa e outra. Até porque rede social é vício, né? Todo mundo gosta dum monte de like, dum monte de hashtag tamojunto. O militante de uma organização precisa fazer com que aquele grupo de pessoas mais ligado à causa esteja sempre muito engajado. Um governo precisa fazer outra coisa. Um governo precisa resolver problemas. E resolver problemas exige convencer o maior número de pessoas possível de que um problema existe para, então, mobilizar recursos, adaptar legislação, essas coisas.
Se você vai na televisão e fala “racismo ambiental”, o jogo já está traçado. A militância de esquerda vai aplaudir porque verdades estão sendo ditas. E um bando de gente no Brasil vai antagonizar. Se você representa o ministério da Saúde e quer levar ao maior número de pessoas informações importantes sobre o estado de quem acabou de dar à luz, que tipo de linguagem é mais eficaz? Que tipo de linguagem vai gerar menos ruído?
O ruído atrapalha a comunicação. O ruído se sobrepõe à comunicação. O ruído, neste caso, é a mensagem. Ninguém está discutindo sobre o fato de que mais pessoas negras do que brancas estão expostas ao dano causado pela ausência de obras de infraestrutura nas cidades. Ninguém está discutindo sobre depressão pós-parto. O debate de um lado ou de outro virou sobre que palavras usar quando.
Claro, alguns vão dizer ‘mas é importante discutir’? Discutir é importante sempre. Se ainda não ficou claro, redes sociais geram calor, não produzem resultados. O que produz resultados é aquilo que mobiliza pessoas à ação. Outros dirão que as pessoas precisam ‘ouvir umas verdades’. Tudo certo. Mas quem tem água entrando na sua casa e destruindo tudo que se passou a vida construindo precisa é de drenagem, precisa de esgoto e, neste exato momento, precisa de uma grana. Isso é política pública. Política pública nasce de convencer mais gente de que o problema existe até porque, no Congresso Nacional, um bando de gente falando essas verdades que precisam ser ditas não dá cem votos em mais de quinhentos.
Esta nossa conversa aqui não tem rigorosamente nada a ver com se ‘racismo ambiental’ ou qualquer outro jargão identitário tem base científica ou não. A questão aqui é de comunicação. Tem jeito de comunicar que gera muito calor e nenhum resultado. Tem jeito de comunicar que diminui o calor para gerar resultado. O governo precisa escolher se quer militar ou fazer política pública para quem precisa. Como a direita bolsonarista já contaminou esta linguagem, neste momento da história um não é compatível com o outro. Mais do que isso. O discurso anti-identitarismo comove muito mais gente do que o identitário.