Como regular as redes
Com o primeiro aniversário do 8 de janeiro, voltamos a falar sobre regulação das grandes plataformas digitais. Se existe um consenso entre a maioria dos grupos políticos é de que há algumas pessoas com ideias muito erradas por aí. Alguns vão chamar de marxismo cultural. O que os professores ensinam aos nosso filhos precisa ser urgentemente controlado. Outros chamarão de fascismo. O discurso de ódio precisa ser urgentemente controlado. Como sociedade, parecemos estar dizendo que há ideias que precisam urgentemente ser controladas. O que não temos é um consenso a respeito de quais são essas ideias.
O que é a regulação das redes, então? Uma disputa a respeito de que grupo vence em calar o outro? Bem, temos um Congresso de direita. Se a disputa for no voto, a direita ganha de goleada.
Com muita frequência, este logo vira um debate sobre liberdade de expressão. Mas e se isto for um engano? E se o problema que abala as democracias não estiver nas ideias sendo expressas nas redes sociais? Porque pode existir uma maneira de regular as redes sem tocar na liberdade de expressão. Isso mesmo. Sem tocar, inclusive, no direito de falar bobagem.
Mas, antes, vamos falar de conceitos? Em algum momento no passado a gente chegou coletivamente à conclusão de que liberdade de expressão era bom para democracias. Não é só que fomos utópicos, partimos do princípio de que poder falar o que pensa é um direito humano inalienável e pronto. A coisa vai mais fundo. Chegamos à conclusão de que censurar ideias falsas, mesmo ideias perigosas, não seria do interesse coletivo da sociedade. Então todas as democracias botam liberdade de expressão lá em cima dos seus princípios. Algumas listam exceções específicas. Na França tem limite para divulgar ideias nazistas, por exemplo. Mesmo quando democracias têm exceções elas são específicas e pontuais.
Essa maneira de encarar liberdade de expressão tem origem. É o capítulo dois do livro “Sobre a Liberdade” do filósofo inglês John Stuart Mill, que foi contemporâneo de Marx. E ali ele constrói um argumento que se tornou conceito base para as democracias modernas. Ele mostra por que todas as ideias, independentemente de quão controversas ou impopulares possam ser, devem ser permitidas e discutidas livremente. Se você pode falar a coisa mais absurda, isso vai despertar um debate. Um número de pessoas vai prestar atenção no que você disse. Argumentos contra o que você disse serão trazidos à tona. Argumentos a favor talvez apareçam também. Se você conseguir fazer com que sua ideia atraia mais atenção, se conseguir convencer pessoas o suficiente, aquilo vai mudando aos poucos a maneira como a sociedade pensa.
O direito de um homem amar outro homem já foi inconcebível. O direito de esses dois caras casarem já foi absurdo. As ideias completamente absurdas e impensáveis de uma geração podem perfeitamente ser o bom senso da geração seguinte. E está aí a essência do argumento do Mill. Ele mesmo, em sua época, foi um dos primeiros homens a abraçar o feminismo. A defender o direito das mulheres de ter uma educação exatamente como a dos homens, de votarem e serem votadas. Era um cara considerado muito excêntrico por conta disso. O absurdo, o perigoso de hoje, pode ser o normal de amanhã. Isso vai depender da capacidade que as pessoas têm de convencer no debate público.
No fim das contas, o que o Mill estava falando era o seguinte. Existe um mercado de ideias. Uma grande feira. A sociedade é uma feira onde ideias estão sendo apresentadas o tempo todo. A gente compra umas, fica em dúvida se queremos outras, dizemos que não queremos as terceiras. E ideias não vêm prontas, né? Alguém tem uma intuição, outro alguém testa aquela hipótese, dá uma melhorada. É um trabalho de colaboração continuado e ininterrupto.
Essa maneira de ver como o jogo das ideias circulando livremente na sociedade funciona é radicalmente democrática. Ela confia na capacidade coletiva de discernimento e na sabedoria das massas, ao invés de depender de autoridades para ditar o que é verdadeiro ou aceitável. Porque essa é a alternativa, né? Ou confiamos em que a sociedade saberá com o tempo quais ideias são boas e quais são ruins, ou escolhemos um conselho de sábios que decidirá o que pode e o que não pode ser dito. E isso sempre vai terminar do mesmo jeito, tá? Quem vai ser calado são as minorias. E, por outro lado, se não confiamos na sociedade em discernir boas ideias de más ideias, por que confiamos nela para eleger seus líderes?
Se o Mill está certo, e democracias partem do prinípio de que ele está, o debate entre boas e más ideias faz ainda outra coisa. Ele promove o avanço do conhecimento. Porque sem confrontar ideias com liberdade, a gente não avança. Olha, há um século eugenia era política pública na maioria das democracias. Sim, governos se preocupavam com pureza racial. Sem muito debate essas coisas não se desmontam. O que aprendemos com a história é que livre debate, liberdade de expressão, melhora as sociedades.
Claro, a gente vive num mundo muito diferente daquele em que o Mill viveu. Mas e se o problema das fake news, a questão da desinformação, da radicalização, não estiver ligado à liberdade de expressão. Já pensou nisso?
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Vamos voltar aqui ao modelo do mercado de ideias do Mill. O fulano publica um texto. Um artigo qualquer. Um vídeo. Aí joga no tal mercado. Ele tem de chamar a atenção das pessoas. Primeiro passo, né? Ouve aqui o que eu tenho pra falar. Ele tem de conquistar uma audiência grande se quer que sua ideia tenha chance de se tornar consensual. Faz isso usando argumentos. Vai ter gente engajando com ele, apresentando uns poréns, mas também quanto mais debate acontecer, mais gente presta atenção. Até que, depois de um tempo, ele emplaca ou não.
Como é que isso funcionava, na prática, antes de haver redes sociais? Se você queria ser ouvido, precisava primeiro convencer o editor de um jornal, de um programa de rádio ou TV, precisava arranjar alguém para topar publicar um livro seu. Podemos gostar ou não de como funcionava, mas em essência tinha um bando de gente cujo trabalho todo dia, toda semana, todo ano, era sentar, analisar ideias e ver quais faziam sentido publicar. E esses jornais, rádios, TVs, editoras, todos eram concorrentes. Então tinha uma disputa assim como havia cuidado com reputação. Se você começa a publicar uns malucos, vai virando marginal, esquisito. Tinham uns mecanismos ali.
Como é que funciona hoje? Tem gente que gosta de argumentar que é uma democracia porque todo mundo pode abrir conta no Twitter. Ou no X. Vocês sabem. Só que não é. Porque ter uma conta no Twitter, ou no Insta, ou Face, ou no TikTok, ou no YouTube, ou Snap, ou não importa onde não é garantia de audiência. Aliás, a grande maioria das pessoas nas redes sociais são ouvidas por cinco ou dez e só. Tem uma minoria que alcança milhares. Uma menor ainda alcança centenas de milhares. Milhões, então, nem se fala. Quer dizer, o modelo não mudou tanto assim. Ainda existe um grupo de pessoas que seleciona que vozes serão ouvidas e que vozes serão ignoradas. Só que, nas redes, essas pessoas não fazem isso diretamente. Elas fazem a seleção através dos algoritmos.
Esse aqui é um ponto importante. Em cada cidade grande do Ocidente democrático, na década de 1990, você tinha pelo menos dois grandes jornais. Cinco rádios com grande alcance. Programação local em algo entre dois ou quatro canais de televisão. Algumas editoras de livro. Isso em cada cidade. Hoje temos, no Ocidente democrático, três grandes plataformas sociais que atingem quase toda a população. Meta, que são Facebook e Instagram. ByteDance, que é o TikTok. Google, com o YouTube. São bastante menores, mas poderíamos incluir também X ou Kwai. As três grandes plataformas são a principal fonte de informação de quase 100% da população conectada em todas as democracias. Os mesmos dois ou três algoritmos, e todos funcionam de forma muito similar, escolhem que vozes serão ouvidas e que vozes serão escondidas em todas as democracias.
Percebem que a gente não está falando de um problema de liberdade de expressão? O problema não é que ideias podem ser manifestadas ou não. O problema está na seleção de que ideias vão ter público e quais não. O que se estabeleceu nos últimos dez anos é um trust global, três companhias que controlam completamente quem vai ser ouvido.
No modelo do Mill, se você tinha uma ideia, você precisava convencer as pessoas de que sua ideia valia a pena ser levada adiante. Conseguia ser publicado, ser veiculado, precisava argumentar, convencer mais gente. E havia concorrência nesta decisão de quem teria público. Esse modelo quebrou. O primeiro passo não é mais com um ser humano. Agora é um programa de computador que você precisa convencer. E o que esse programa, esse algoritmo, quer? Ele quer dividir as pessoas em grupos de interesse. Ele quer dividir as pessoas pelas paixões comuns que elas têm. Pelos interesses que as mobilizam emocionalmente. Isso é bom pra vender publicidade. É muito ruim como critério editorial.
A gente não precisa falar de política. Sabemos, por estudos, que pedófilos têm facilidade de encontrar outros pedófilos nas redes sociais. Isso mesmo. Há estudos que mostram isso. Um deles, feito no ano passado pela Universidade de Stanford, foi comandado pelo cara cujo emprego anterior era comandar a segurança da Meta. Sabemos que o tipo de conteúdo que é empurrado para mulheres adolescentes nas redes leva a um aumento de distúrbios alimentares graves, leva a se cortarem, aumenta suicídio. Sabemos que rapazes jovens são radicalizados em grupos terroristas islâmicos, de supremacistas brancos. Por quê? Porque, caramba, jovens inseguros que começam a se interessar por ideias ligadas a força já são logo expostos a este tipo de conteúdo. Porque moças de 15 anos são muito preocupadas com seu aspecto físico. Viu um vídeo sobre isso, a rede já vende um segundo, e um terceiro, e cada vez mais radicais.
O algoritmo só quer que você fique lá, interessado.
Sabe, o Mill compreendia que o mercado de ideias funcionava como um mecanismo de auto-correção na busca pela verdade, por mais difícil que seja definir o que é verdade. O problema é que o mercado de ideias foi regulado.
É isso que aconteceu. Três grandes empresas regularam o mercado de ideias. Impuseram regras sobre que ideias a gente vai ver. Nós não escolhemos livremente o que vamos ler ou assistir ou ouvir quando entramos numa rede. Um algoritmo escolhe usando nossas emoções mais basais como critério de escolha.
O que resta a nós? À sociedade? Decidir se queremos regulação privada da nossa conversa. Ou se achamos que temos o direito de opinar sobre que critérios devem definir quais vozes serão ouvidas e quais não. Não se trata de proibir que alguém fale algo. Isto nada tem a ver com o problema. Não é sobre liberdade de expressão. É termos uma conversa sobre quem, na sociedade, tem o direito de escolher quem terá audiência.