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Quem não condena o golpismo?

Pois é. Há um ano houve uma tentativa de golpe de Estado no Brasil. Um golpe é um movimento que, usando a força, busca derrubar o regime constitucional para botar outra ordem institucional no lugar. Foi isto o 8 de Janeiro de 2023. Algumas milhares de pessoas se insurgiram contra o Estado brasileiro. Atacaram, especificamente, as sedes dos três poderes. QUeriam, daquele ato, um único resultado: que a eleição fosse revertida. Que o presidente mudasse. Golpe.

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Este movimento foi organizado. Não foi acidental. Ônibus foram alugados. Mensagens foram disparadas em inúmeros grupos de Zap e Telegram chamando para a Festa da Selma. O secretário de Segurança do Distrito Federal, que havia sido ministro da Justiça do governo Bolsonaro, sumiu. Durante várias horas, o governador do Distrito Federal sumiu. O caos se implantou e as pessoas responsáveis pela segurança estavam incomunicáveis.

A invasão e depredação dos palácios dos três Poderes exigiu várias decisões rápidas. A primeira, ao constatar que o governo do Distrito Federal estava paralisado por querer ou por incompetência, foi do presidente da República. Lula poderia ter feito o que a maioria dos presidente da Nova República fariam. Inclusive ele próprio, no passado. Decretar uma GLO, Garantia da Lei e da Ordem, e convocar o Exército Brasileiro para resolver o problema.

Não aconteceu. O governo federal, agora, está tentando convencer todo mundo de que quem falou “GLO não” foi a primeira-dama, Janja Lula da Silva. É uma versão nova para a história. Talvez o início da preparação para uma carreira política. Houve, sim, um debate, ali, na sala do prefeito de Araraquara, onde Lula estava. Na época, o que pessoas dentro do governo diziam era um pouco diferente. O ministro da Justiça Flávio Dino é quem teria reagido imediatamente contra a ideia de uma GLO. O ministro Alexandre Padilha, das Relações Institucionais, também. Do outro lado, o ministro José Múcio fazia seu papel de garantir que os militares eram leais. Múcio defendia a GLO.

Faz mais sentido, até porque quem bateu de frente com os militares desde o início, com uma profunda desconfiança a respeito deles, era Dino. Fato é que havia um risco real. Você quer dar o comando do Distrito Federal para o Exército em meio a uma tentavia de golpe que pode envolver os militares? Não. Você não quer.
Temos algumas pesquisas desta semana. Uma é da Genial/Quaest. 89% dos brasileiros reprovam os atos de 8 de janeiro. Na leitura do Felipe Nunes, diretor da Quaest, a diferença chave entre os Estados Unidos e aqui é que não houve partidarização. Os atos golpistas não foram percebidos como parte do jogo Lula contra Bolsonaro.
A turma da Atlas Inteligência perguntou o que teria levado ao movimento de 8 de janeiro. 34,2% disseram que foi um ato de fanatismo político. Outros 18,8% trataram como tentativa de golpe de Estado.

Mais 12,2% falaram em manipulação por terceiros.

Há um outro conjunto de respostas. 20,8% dizem que a motivação veio de constatar fraude eleitoral. E 2,4% tratam como uma ação de patriotismo.
Quer dizer, as duas pesquisas, de institutos diferentes, parecem sugerir que bem mais do que metade dos brasileiros consideram que uma linha grave foi cruzada. E, no entanto, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, achou melhor tomar um café com o ex-presidente Jair Bolsonaro do que participar de um evento pela democracia em memória da tentativa de golpe. Vejam, Lira tuitou, falou de democracia, essas coisas. Mas não é só que ele se ausentou. Ele se ausentou e foi se encontrar com Bolsonaro. Isso significa.

Treze governadores foram ao ato. Dez acharam desculpas para não ir, incluindo Tarcisio de Freitas, de São Paulo, Cláudio Castro, do Rio, Romeu Zema, de Minas, e Ronaldo Caiado, de Goiás. O próprio Ibaneis Rocha, governador de Brasília, não foi. O mesmo governador que sumiu quando era responsável pela PM do Distrito Federal. Dois dos três tucanos foram. Raquel Lyra, de Pernambuco, Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul. Eduardo Riedel, do Mato Grosso do Sul também arranjou um compromisso prévio. Ocupado demais para dizer ao Brasil que os chefes de executivo estão juntos contra o golpismo.
O que está acontecendo aqui?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Nós temos um colunista fixo novo no Meio. Estreia agora, na quarta-feira. É o professor Wilson Gomes, da Universidade Federal da Bahia. Talvez vocês o conheçam do Twitter, talvez de seus muitos artigos na imprensa. Pouca gente tem um humor mais ácido. Poucos têm uma visão tão clara de como a política se organiza por mensagens, pelo que é falado, por como é falado. E, olha, nesse tempo de comunicação digital, é impossível se entender política ignorando comunicação política. Os assinantes premium do Meio poderão lê-lo todo mês. Nessa quarta já começa. E você? Já assinou o Meio. Gente, é baratinho. Dá um chope e cobre o mês todo.
Este aqui? Este é o Ponto de Partida.

É por isso que é chave o alerta do Felipe Nunes. Não pode partidarizar o 8 de janeiro. O 8 de janeiro não foi contra Lula. O 8 de janeiro foi contra o Brasil. Janja não é a heroína do 8 de janeiro. As instituições da República é que resistiram ao 8 de janeiro. Pessoas no exercício de suas funções públicas tomaram decisões que definiram o rumo daquele dia. É muito importante a gente não misturar os canais.

Sabe, respeito imensamente intuição de político experiente. Esses governadores acham que é mau negócio para eles aparecer num evento celebrando a democracia. Arthur Lira obviamente acha que não é bom para ele estar no mesmo evento. Há exato um ano, foi radicalmente diferente. No dia 9 de outubro, todos os governadores, Lira, Rodrigo Pacheco, os ministros do Supremo desceram juntos a rampa do Planalto e caminharam até o palácio do STF. Tarcísio estava lá. Lira estava. Em cima do ato, todos estavam juntos. Um ano depois, não mais.

Por quê? Uma pesquisa diz que o 8 de janeiro é rejeitado por quase 90% da população. Outra afirma que não chega a 25% o número de brasileiros que veem patriotismo ou repulsa à fraude eleitoral naquele ato. Não chegam a um quarto os apologistas. É por conta desta minoria que dez governadores e o presidente da Câmara dos Deputados consideram desgastante se apresentar num evento em que celebramos a sobrevivência da democracia?

O que está acontecendo?
O que está acontecendo é que o Brasil continua dividido. Profundamente dividido. Se as eleições fossem hoje entre Lula e Bolsonaro, novamente o vencedor ganharia por um fiapo de votos. E, olha, eleições muito apertadas como a de 2022 se decidem pela sorte. Se num dia faz sol demais no Rio, periga uma turma preferir ficar na praia e não vai votar. Se chove demais em São Paulo no mesmo dia, um toró daqueles, periga uma outra turma preferir não sair de casa. Um milhão de votos a mais, um milhão a menos, o resultado eleitoral muda. A gente nunca acha que nosso voto conta até o dia em que, sim, ele conta.

Meu ponto é o seguinte. Há exato um ano, houve uma tentativa de golpe de Estado no Brasil. E, um ano depois, não temos qualquer consenso na sociedade a respeito do bolsonarismo. Sim, muitos eleitores do ex-presidente consideram que a ação foi de profundo mau gosto. Que foram uns aloprados que agiram. Alguns talvez até achem que foi coisa do PT. Nenhum deles deixou de ser bolsonarista.

O 8 de janeiro não apareceu do nada. Ele foi organizado. Ônibus foram alugados. Os generais Braga Netto e Heleno trabalharam duro para incentivar as pessoas a se manterem acampadas na frente dos quartéis, pressionando os militares a agir. E foram quatro anos de trabalho, não é? No dia 7 de setembro de 2021, Bolsonaro não só reuniu a maior manifestação de toda sua presidência. Naquele dia, caminhoneiros entraram na esplanada dos Ministérios com o objetivo de invadir o Supremo Tribunal Federal. A PM resistiu, e não resistiu poucas vezes. Resistiu a sete avanços durante aquele dia. Bolsonaro discursou na Avenida Paulista afirmando que não obedeceria mais ordens expedidas pelo ministro Alexandre de Moraes. Ele declarou a uma multidão gigante que não seguiria a Constituição. Ele estava convicto de que conseguiria dar o golpe, se não no dia 7, nos dias seguintes.

Não deu. Não teve apoio do Alto Comando do Exército. Mas ele trabalhou ativamente para ter. Trabalhou ativamente para conseguir se instalar no poder sem precisar cedê-lo. Trabalhou pela ruptura da democracia brasileira.

Jair Bolsonaro não será candidato à presidência em 2026. Está inelegível. Mas alguém será o candidato do bolsonarismo. Não virá um Bolsonaro light porque o eleitorado bolsonarista cobrará, desta pessoa, um discurso no mesmo tom. Tarcísio sai correndo na frente, mas faltam mais dois aniversários do 8 de janeiro até vermos as peças arrumadas.

Uma parte dos brasileiros se desencantou com a democracia. Não acredita que vivemos numa democracia. O ponto chave é que um grupo grande de brasileiros não topa mais o jogo como está sendo jogado. Considera que há valores fundamentais que não podem ser negociados numa eleição. Então não acham que alguns governos são legítimos. Acham que alguns grupos políticos precisam ser expurgados.

Por enquanto, a Justiça tem um trabalho simples. Está julgando os pequenos. Vai sempre soar como mão pesada. Precisa ir atrás de quem financiou e, principalmente, de quem organizou. De quem comandou. Não terá cara de justiça se só ficar nos malucos que passaram um mês nos banheiros químicos à beira dos quartéis.
Mas o mais importante é que nos dividimos como se fôssemos inimigos. É como se a ideia de ser brasileiro, a ideia de que temos muito em comum juntos, houvesse se perdido. Sei que tenho falado muito disso. É o maior problema que temos. Alguém precisa lembrar que estamos juntos no barco. Que podemos discordar em alguns temas e que, olha, está tudo bem discordar. Discordar é normal. Discordar é inevitável.

Enquanto não abraçarmos a discordância na boa, haverá risco para a democracia. Porque ser democrata é abraçar a discordância.

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