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Viva o Povo Brasileiro

Hoje é quarta-feira, dia 20 de dezembro de 2023. Aí temos quinta, sexta, sábado e no domingo já é véspera de Natal. Mais uma semana, acaba. Eu vou tirar uns dias, então esse é o último Ponto de Partida de 2023. Fim de ano todos nós meio que olhamos pra trás, né? Olhamos pro todo. O que foi que deu certo, o que deu errado, quais as brigas que tivemos. Com quem a gente fez paz. E é disso que eu queria falar. Não sou uma pessoa religiosa. Não sou cristão. Mas estamos num país cristão e esta é uma época de comunhão. Eu sou brasileiro, então esse sentimento bate. De tudo que a gente perdeu nos últimos dez anos, a coisa mais preciosa foi a ideia de comunhão. Perdemos o sentido do todo.

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Estou pensando nisso desde a semana passada, a partir de um comentário do @letough. É um comentário inteligente, educado, culto, informado e do qual eu discordo em termos fundamentais. Tem um certo prazer, sabe, em conversar com franqueza, com cordialidade, quando discordamos. É assim que a gente possibilita a transformação da sociedade.

<< Pedro, achar que em algum momento da nossa história fomos um único povo me soa Freyriano demais. Nunca fomos um único povo. Até porque a maior parte da população brasileira é descendente de escravos sequestrados de suas terras e forçados a trabalhar em uma terra que não era a sua. Não creio que identificação cultural desague num sentido de um único povo. >>

Hoje eu queria defender, aqui, que somos sim um povo só. Com coisa demais em comum pra abandonar esse sentimento de que estamos juntos, de que precisamos voltar à comunhão. Mas eu entendo, também, que minha visão é minoritária. Que por muitas razões pode, em alguns cantos, ser até percebida como conservadora. O comentário é feliz porque representa muito bem o zeigeist, o espírito do nosso tempo. Para a maioria das pessoas preocupadas com o Brasil, hoje, que leem, que debatem, essa leitura do @letough vai parecer quase um truísmo. Parece estar listando um fato acima de qualquer debate. Algo com o qual um conjunto grande de pessoas razoáveis tenderão a concordar.

Esse conceito, quando a gente discute filosofia política, é muito importante para compreender uma sociedade numa determinada época. Aquelas ideias com as quais um conjunto grande de pessoas razoáveis tenderão a concordar. Não estamos falando aqui de pessoas radicais, não estamos falando aqui de pessoas desinformadas. É a média culta e ponderada, moderada, de uma sociedade. “Nunca fomos um único povo.” Parte de nós descende de pessoas sequestradas de suas terras e forçadas a trabalhar noutro canto do mundo. Ele não falou, mas poderia dizer também: Parte de nós descende dos indígenas que estavam aqui, cuja terra foi tirada, capturada, que foram também escravizados, exterminados por doenças europeias, por destruição do ecossistema que os sustentavam, por tiro. “Não creio”, isso ele diz, “que identificação cultural desague num sentido de um único povo.”

Sabe, eu não acho que essa palavra, freyriano, seja uma ofensa. A visão freyreana que ele cita é uma referência ao livro Casa Grande e Senzala do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. O livro serviu de base à ideologia do Estado Novo. O Freyre foi o primeiro cara que falou, ainda na década de 1930, que nós brasileiros somos um povo formado pelo encontro de três grupos de humanos. Os indígenas que calharam de viver aqui nesse pedaço do mundo em 1500, povos subsaarianos, principalmente bantu e iorubá, povos da África, e europeus, principalmente ibéricos, principalmente portugueses. Essa ideia que o Freyre trouxe serviu de base à ideologia construída no Estado Novo a partir de 1937. Serviu de base, também, durante a Ditadura Militar. Eu fui educado em livros que diziam isso mesmo. Que diziam, até, uma coisa que o Freyre nunca falou, que o Brasil formava uma democracia racial. Todos os livros didáticos de quando eu era menino tinham aquela desenhozinho, uma coisa aquarelada do estilo dos livros didáticos dos anos setenta e oitenta, do indiozinho, do pretinho, do branquinho, três meninos de mãos dadas. Sorridentes.

O Freyre é muito criticado hoje em dia. Ele foi um dos fundadores do pensamento sobre o Brasil. Ele, o Caio Prado Júnior, o Sérgio Buarque de Holanda. O Freyre era, sim, um cara mais conservador. Não tanto quanto o Sérgio Buarque dos anos trinta, mas quando a gente compara com o Caio Prado ele era bem conservador. E a visão dele, do Freyre, foi tão influente por tanto tempo, foi tão particularmente influente durante as duas ditaduras, que é natural uma repulsa. É quase como que recusar a visão de Brasil que os ditadores tentaram impor.

Não é só isso. É também reconhecer, embora ele nunca tenha dito isso, que não tem nenhuma democracia racial. Que a sociedade é muito desigual e que um dos principais cortes pelos quais a desigualdade se dá é por raça. Não é apenas uma desigualdade econômica. É de acesso a educação, portanto de acesso a oportunidades. Criança demais não tem a chance de sonhar com uma vida melhor que a dos pais pelo simples fato de que não parece haver espaço pelo qual se possa deslizar e escapar daquela vida. E ainda assim, contra o zeitgeist, agora que o Natal se aproxima, me permitam argumentar que reconhecer toda a desigualdade não exclui a ideia de que somos, sim, um só povo.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Esse aqui é o nosso último encontro do ano. 2023 foi um ano bom pra democracia brasileira, mas foi muito ruim para o jornalismo brasileiro. A maioria dos veículos terminam o ano com menos assinantes do que tinham em dezembro de 2022. Isso quer dizer menos repórteres, menos informação. Isso quer dizer mais espaço para a desinformação. Nós temos duas modalidades de assinatura no Meio. Custa 15 reais por mês, só quinze reais a mensal. Ou 150 por ano. Dois meses saem de graça. Jornalismo precisa dos seus leitores, dos seus espectadores. A gente precisa de vocês. E, olha, se você fizer a assinatura anual até o dia 31, ganha o livro das charges de 2023. Livro físico, mesmo, com todas as charges que o Meio publicou durante o ano. É quase uma historinha ilustrada de 2023. O livro vai ser enviado no meio de janeiro.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Por que freyreano? Por que, não, uma coisa Darcy Ribeiro? A gente costuma pensar no Darcy como um camarada da educação, pai dos CIEPs, trabalhista como só, janguista como só, brizolista como só. Um político nacionalista de esquerda. Mas antes de tudo isso ele era um antropólogo, um grande antropólogo e escreveu um livro chamado O Povo Brasileiro. E o argumento que ele fazia começava pelo mesmo ponto que o Freyre. Somos um conjunto miscigenado de pessoas que formam um só povo brasileiro.

Sabe, imediatamente antes de Gilberto Freyre aparecer com Casa Grande e Senzala, o Brasil estava ideologicamente no mesmo lugar em que boa parte das democracias ocidentais. Havia uma convicção, naquele início de século 20, de que miscigenação era um problema. O início da República adotou uma política de branqueamento da população, proposital, trazendo gente da Europa pra isso. O mundo era eugenista. Quando o Freyre apareceu dizendo que somos um povo que nasce do encontro de três raças, aquilo era radical. Quando ele falava com admiração deste encontro, aquilo era muito radical.

Muitas vezes, no livro, ele parece não reconhecer a dor e a tragédia da escravidão. Aos nossos olhos de século 21, isso é tão patentemente absurdo. Mas exato um século atrás, quando ele estava estudando para escrever esse livro, olhar para a mistura de grupos humanos, de cores de peles humanas, e ver isso de forma positiva, era radical, era novo. O Getúlio abraça esse conceito, no Estado Novo, no mesmo momento em que Adolf Hitler estava consolidando seu poder na Alemanha. A Europa toda estava se fascistizando. Nos Estados Unidos, é o auge de influência da Ku Klux Klan no Sul do país. E o Brasil estava inventando a celebração da democracia racial. Era cínico? Sim. Queria passar uma borracha no extermínio que representou a escravatura? Sim. Mas era radical e estava no caminho certo.

O Darcy vai muito mais longe do que o Freyre. Ele diz que ser brasileiro é estar profundamente conectado com a diversidade cultural do país. É ser miscigenado e viver essa miscigenação, assumir a miscigenação. Não é uma coisa de celebrar, sair em passeata gritando slogans. É viver a miscigenação todos os dias. No cotidiano.

Sabe, o @letough lembra que a gente não pode ignorar que muitos brasileiros descendem de gente que foi sequestrada na África. Mas quem são esses brasileiros? Eu sou um deles. E não é muito longe. Descendo diretamente de duas mulheres escravizadas durante o século 19. Descendo delas e de homens brancos que não eram seus maridos. Homens com os quais talvez elas não escolhessem casar. Mas homens que registraram seus nomes nas certidões de batismo das crianças que teriam filhos, netos, bisnetos até eu nascer. Eles não se esconderam porque não havia razão, na cabeça deles, daquela sociedade, para negar que eram pais daquelas crianças. Se aquele registro não tivesse ocorrido, eu possivelmente nunca saberia. Descendo também de mulheres indígenas nos séculos 16 e 17. Dessas não tenho pistas de quem são. Tenho só o que meu código genético diz. Que tenho aqueles genes. Pelos lugares em que minhas famílias de pai e mãe estavam nesse tempo, possivelmente eram pessoas de algum canto entre a Bahia e o Sudeste. Assim como sou português e sou italiano, sou também bantu e tupi. E isso só diz uma coisa a meu respeito. Que não sou português, ou italiano, ou bantu ou tupi. Quer dizer que eu sou brasileiro.

Quando falamos que 56% de nós brasileiros somos negros, o que queremos dizer é o seguinte. De acordo com o IBGE, dados de 2022, 45% de nós se declaram pardos, 43% se declaram brancos e 11% se declaram pretos. Some pretos e pardos, dá mais de metade da população. Eu me declarei branco. O fato de minha pele ser branca me trouxe vantagens. O fato de eu vir de uma família em que as pessoas têm alta escolarização há várias gerações me trouxe muito mais vantagens. Meus avós com pele muito mais escura que a minha já tinham educação superior. E isso, no Brasil, sempre embranqueceu as pessoas aos olhos dos outros. A gravata, o diploma embranquecem. Mas sejamos brancos, pardos ou negros pela cor da pele, somos todos, ou quase todos, mestiços. Descendentes de povos muito diversos e culturas muito distintas, somos quase todos. O mais preto, o mais branco, se está há gerações o suficiente no Brasil, descende da mistura que somos. A tragédia da escravidão está dentro de quase todos nós. E isso quer dizer que lidar com suas consequências é missão coletiva de todos nós.

Sempre que a gente organiza uma visão de mundo a partir de uma ideia de como a humanidade funciona, de como a sociedade se organiza, de que valores deveriam nos guiar, isto será uma ideologia. E a gente não consegue ter uma ideia de o que o Brasil é, quais são os seus problemas e como resolvê-los se não usarmos, em essência, uma ideologia. Ideologias são ferramentas, lentes que usamos para poder dar conta de entender como o mundo funciona.

O que o Estado Novo e a Ditadura militar propunham, com a ideia de democracia racial, era uma ideologia. Mas a visão no comentário do letough é também baseada numa ideologia. Às vezes a gente tem tido uma visão negativa de ideologia mas, olha, o contraponto que eu estou fazendo, a defesa de que, sim, somos um só povo, também é uma ideologia.

Meu ponto aqui é o seguinte. A afirmação “nunca fomos um único povo” não está acima de qualquer debate porque ela é, em essência, uma afirmação ideológica. De maneiras distintas, as visões dominantes tanto na direita quanto na esquerda, hoje, partem da ideia de que não somos um só povo. Isto não é só no Brasil. Nos tribalizamos. Nos vemos como grupos com identidades específicas em oposição aos outros com os quais convivemos num só país. Estamos escolhendo demarcar nossas diferenças. “Não creio”, estou voltando aqui ao comentário, “que identificação cultural desague num sentido de um único povo.”

Mas identificação cultural é justamente um dos itens que define o que um povo é. Um povo é quem convive numa mesma sociedade, compartilha de uma mesma cultura, tem em comum uma mesma história e está organizado pela mesma estrutura política. Se eu falo Asa Branca vocês sabem de cara os primeiros acordes. Se falo de como o Galvão Bueno gritava o nome do Senna no momento da vitória, vocês começam a ouvir o grito nas suas memórias.

Um argentino não sabe essas coisas. Não é que um francês não saiba, ou um americano, ou um chinês. Um uruguaio não sabe nada disso. Um paraguaio, um colombiano, um venezuelano. Eles não sabem o que é ser brasileiro e estão aqui ao lado. Eles não sabem em dois minutos como é o gosto duma feijoada. Não sabem como bate bem uma laranja e um gole de cachaça pra digerir melhor. Nós sabemos. A feijoada que é um prato de escravizados pretos servido com linguiça portuguesa e farofa tupi.

Se não é pra ficar com o Freyre, vamos ficar com o Darcy. Nós somos um só povo. Temos coisa demais em comum. Sim, o país é desigual. Sim, há racismo. Se for menos desigual, se for menos racista, vai ser melhor pra todo mundo. A violência cai, a economia melhora, tem mais gente feliz na rua. A gente convive menos com injustiça. Faz bem. O caminho começa com cuidar melhor do lugar, do mato. Começa com cuidar melhor das pessoas. Com ensinar. Com abrir portas que permitam às crianças sonharem em serem melhor que seus pais. Mas se a gente abandona o que temos em comum, e o que temos em comum é que somos um povo mestiço, um só povo que nasce de muitos povos, o que a gente é demais.

Vou tirar meus dias. Primeiro praia baiana, com os meninos. Depois serra do Rio, só eu e a Lya. Feliz Natal. Próspero ano novo a todos nós, brasileiros.

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