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Milei é mesmo de extrema direita?

Javier Milei é de extrema direita ou da direita radical? Quer compreender a diferença? Porque ainda não está claro. Milei pode ser Bolsonaro, mas pode ser só Jânio Quadros. Vem comigo.

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A gente na internet tem de fazer essas coisas de saída. Javier Milei é do time Trump, Bolsonaro. Não tem um bando de bolsonarista nas redes sociais celebrando essa vitória à toa. Mas isso quer dizer, imediatamente, que Milei é de extrema direita? A resposta para essa pergunta não é tão clara assim porque, mais importante do que a expressão é o que entendemos por ela.

Meu ponto é o seguinte: Milei é do mesmo time que Trump e Bolsonaro, sim. Mas em que ele é igual a Trump e Bolsonaro? Essas são perguntas importante se a gente quer compreender o que aconteceu na Argentina. Então vamos começar falando de direita, de espectro político.

Eu uso uma definição que vai nessa ordem até o limite. Centro, centro-direita, direita, direita radical e na ponta extrema direita. O que dita essa distância? A disposição ao diálogo. Uma pessoa de centro-direita conversa fácil com uma pessoa de centro-esquerda. Tem facilidade de ceder numa negociação em troca de ganhos ali na frente. A pessoa de direita já é mais rígida, tem mais dificuldades de ceder. Mas, ainda assim, vez por outra cede. Os dois reconhecem plenamente na esquerda legitimidade de existir.

Esses dois grupos, centro-direita e direita, estão integrados à democracia. Porque a lógica da democracia é a seguinte. Você dá uma série de liberdades políticas. A liberdade de expressão, de associação. Pode se reunir com quem quiser. Liberdade de imprensa. Liberdade de pensamento. O ambiente é criado de forma que você poderá construir sua própria opinião com todo o espaço que desejar. Um democrata, um verdadeiro democrata, compreende que, nessas circunstâncias, pessoas diferentes chegarão a conclusões diferentes. O temperamento de cada um interfere, o lugar ou as condições em que uma pessoa foi criada, as pessoas que estão em volta quando somos crianças, até detalhes sobre se a personalidade é mais introvertida ou se está mais à vontade com gente muito diferente em volta. Tudo alimenta para que lado político nos inclinamos. Não existe o mundo em que todos estão de um lado ou do outro. Só existe o mundo em que mais ou menos metade da população se inclinará à esquerda e mais ou menos a outra metade à direita. Sempre haverá gente nos dois lados. Diferentemente de todos os outros regimes, a democracia entende isso.

Um democrata de verdade entende isso, está confortável com isso e compreende que respeitar a existência do outro lado, reconhecer a legitimidade do outro lado, é o que ancora o respeito às nossas próprias ideias. O barco é um só, estamos juntos. Se queremos ser respeitados, precisamos respeitar os outros. E a única maneira de respeitar de fato começa no reconhecer que o outro existe, o outro é diferente, tem os mesmos direitos que nós. E que às vezes vai governar.

Javier Milei já deixou muito claro que não encontra legitimidade na existência da esquerda. Então qual é a diferença entre direita radical e extrema direita? Onde encaixamos Milei? E por que essas Mafaldas chorando atrapalham a esquerda muito mais do que ela imagina?

Esse fim de semana, pela primeira vez em muito tempo, o New York Times tirou Israel e Gaza da manchete principal. O tema que substituiu foi a demissão de Sam Altman, CEO da OpenAI. Isso mesmo. Durante todo o sábado e todo o domingo, este foi o assunto da manchete principal do jornal mais importante do mundo. Aqui no Meio, eu tenho, pessoalmente, uma missão. Passar os próximos dias em conversas e leituras para explicar o que aconteceu. Desde Steve Jobs não víamos um executivo do Vale do Silício tão importante. E, no centro da demissão dele, está a percepção de que esta tecnologia põe a humanidade em risco. Mas põe mesmo? Vai ser o assunto do nosso dossiê neste sábado. Assinantes premium recebem. Você já assina? É hora.

Quando eu era pequeno, morei numa cidade chamada Petrópolis e minha mãe estudava Medicina na capital do estado do Rio de Janeiro. Isso faz tempo o bastamte para a capital da época ser a cidade de Niterói. Então de vez em quando, quando parava na rodoviária antes de voltar pra casa, ela trazia quadrinhos para mim. Às vezes era Tintim, às vezes era Astérix, às vezes era Mafalda. Ela adorava Mafalda e aqueles quadrinhos estavam muito vivos. Eram publicados, aqui no Brasil, nuns livros finos assim e compridos, tipo um ano depois de saírem lá. Eu não sei o quanto entendia, mas tinham um significado muito vivo de resistência a uma ditadura que nós brasileiros e eles argentinos vivíamos intensamente.

Perdoem a franqueza, mas essa Mônica abraçando a Mafalda que chora, olha, é um pouco clichê demais. Primeiro porque a Mônica sempre foi apolítica, inclusive na Ditadura. E depois porque vira esse clima de uma esquerda sofredora que não se toca do seguinte: é gente pobre que vota nessa direita populista de Milei, de Bolsonaro, de Donald Trump. Se você é de esquerda, não esquece do seguinte. Não teve Lava Jato, não teve impeachment e o Partido Justicialista, o do peronismo, é o partido dominante da democracia argentina desde a redemocratização. A eleição do Milei foi uma surra nos Kirchner, uma surra nos peronistas, é fruto do fracasso da esquerda argentina.

Talvez, o Quino que não me ouça, talvez na tirinha da Mafalda, hoje em dia, o Manolito não fosse o único eleitor do Milei. E, se não entende isso, não entende o que está em curso. Não entende o risco que o Brasil corre hoje.

Na definição que eu uso, que é a do cientista político holandês Cass Mudde, a diferença entre a direita radical e extrema direita está também na sua relação com a democracia. A direita radical não trabalha pelo rompimento da democracia. Está disposta a forçar a barra, a cometer crimes, a manipular regras para se impor, trabalha para diminuir de todo jeito o espaço da esquerda. Mas não trabalha pela mudança de regime. A extrema direita trabalha pela mudança de regime.

A diferença é essa. Donald Trump está na extrema direita porque trabalhou ativamente para derrubar a democracia americana e, tudo indica, continuará trabalhando por isso, lá dentro, se for eleito novamente. Jair Bolsonaro trabalhou pra derrubar a democracia brasileira o quanto pôde. Igualzinho. Milei é da direita radical ou da extrema direita? Não está claro ainda. E o fato de ele querer um Estado menor meio que complica sua migração para o extremo.

Vamos seguir esse raciocínio. O importante não são os termos, não é o radical ou o extremo. O importante são os conceitos. O que separa Trump e Bolsonaro de um lado, Milei do outro, é que ainda não sabemos o quanto Milei vai operar dentro das leis, o quanto trabalhará para derrubar a democracia. Para haver um golpe de Estado, é preciso usar o Estado. A polícia, o Exército, a espionagem dos cidadãos. Não se faz um golpe ou uma ditadura sem Estado. E esta é a contradição do Milei. Ele promete reduzir o tamanho do Estado. Vai reduzir onde? A gente não sabe nada disso, ainda.

Desde a redemocratização, em 1983, houve onze presidentes na Argentina. Destes, só três não eram peronistas. Três. E um deles não conseguiu terminar o mandato, ficou só dois anos por causa de sua impopularidade. Milei é o quarto, não tem maioria no Congresso e quer fazer reformas radicais no Estado, cortando custos de toda parte. Isso num país onde todo mundo tem um pé no Estado. Todo mundo ganha algum subsídio, algum auxílio, toda a sociedade é beneficiada de alguma forma. É isso que presidentes argentinos fazem há mais de trinta anos: ganham popularidade arranjando dinheiro para profissionais liberais aqui, empresários ali, classe média acolá, aí esse grupo, e aquele grupo, e ainda o outro.

O resultado é um Estado barbaramente endividado que gasta todo mês muito mais do que entra. O resultado é uma inflação que é um trem desgovernado de tão grande. E alguém dentre os peronistas achou que era boa ideia apresentar como candidato o ministro da Fazenda. Ganhou o louco que quer cortar tudo, destruir tudo, se desfazer de tudo.

As pessoas sentem o que acontece quando se é irresponsável com economia. Este é o ponto fundamental. As pessoas decidem votar nesse tipo de candidato que promete destruir tudo para reconstruir de novo e não querem intelectual ou classe média bem pensante passando sermão. Então muitas delas até negam que vão votar nesses caras arrasa-quarteirão. O resultado? Aqui, nos Estados Unidos e na Argentina, as pesquisas indicam que vai ser apertado e não é. Milei deu uma surra no Massa.

A Argentina tem governos muito ruins há muito tempo, mas tem uma sociedade civil culta e organizada. Tem uma estrutura de Estado que torna a coisa muito difícil para presidentes que não são peronistas. Que ainda por cima chegam sem entender como a máquina do Estado funciona. Nada vai ser fácil para Milei e, com franqueza? O cheiro nu e cru é de que ele é um Jânio Quadros. Corre o perigo de fracassar e fracassar muito rápido.

Mas, fundamentalmente, é bom esperar antes de sair colocando etiquetas em Milei. Vamos esperar pra ver como ele governa. Nem todo populista inconsequente tenta derrubar a democracia. Alguns são só incompetentes.

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