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A melhor república é a de hoje

Hoje a República brasileira faz 134 anos. Desde então, tivemos três repúblicas democráticas e três ditaduras. Nenhum dos outros cinco regimes, nem de perto, se aproxima do que a República atual, do que a Nova República, entregou desde que nasceu. Isso não quer dizer que as coisas estejam boas. Desde as jornadas de junho, uma década atrás, entramos em crise. As jornadas não foram causa, foram sintoma desta crise. Tem cara de que o pior já passou. A incompetência do governo Dilma, a truculência antidemocrática do governo Bolsonaro. Mas é importante revisitar o que o Brasil já foi, revisitar a história para entender o que nunca tivemos antes, temos hoje, e por isso mesmo vale cuidar.

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Naquele 15 de novembro, em 1889, o marechal Deodoro da Fonseca não derrubou apenas o imperador dom Pedro II. Ele derrubou, principalmente, o governo do primeiro-ministro Visconde do Ouro Preto, Afonso Celso de Assis Figueiredo. Golpe militar. Ouro Preto era um político progressista, abolicionista, e principalmente eleito. Foi substituído por um general endividado, conservador, que tomou o poder na baioneta.

Naquele Brasil viviam 14 milhões de pessoas das quais por baixo umas dez milhões eram analfabetas. Não tinham tido acesso a nenhuma educação formal. Não era regra, mas na elite do Império havia muitas pessoas negras. Jornalistas, advogados, engenheiros, escritores. Os dois irmãos Rebouças, José do Patrocínio, Machado de Assis, Luiz Gama. Dez anos depois, o regime republicano havia embranquecido por completo a elite brasileira. A ideologia que fundou a república, o Positivismo brasileiro, tinha fortes traços eugenistas. No início do século 20, gente como o médico baiano Raimundo Nina Rodrigues ou o antropólogo Edgard Roquette-Pinto defendiam que a população brasileira tinha má qualidade e devia ser política da república embranquecer o país para que tivéssemos um povo melhor.

Essas ideias não eram atípicas do tempo, o mundo não desembocou em movimentos racistas na década de trinta à toa. Mas a Primeira República tinha como principal marca justamente o fato de não confiar no seu povo.

Sabe, existem muitas maneiras de dividir as ideologias brasileiras. Todo mundo sempre pensa em esquerda e direita, mas um dos principais conflitos políticos no Brasil, desde o início, desde o Império, é o combate entre quem acha que a sociedade brasileira, se lhe for dada autonomia, cresce, explode, cria. Do outro lado, quem defende que é preciso um governo Central, com um comitê de sábios, que defina os rumos do país. Estes dizem que o Brasil é dominado por uma elite ruim que controla o povo. Que o povo, abandonado por si, será sempre manipulado. Pouco organizado. Leniente. Precisa de um governo forte.

Nessa divisão, aí, tem gente de esquerda e gente de direita dos dois lados. A República nasceu com uma ditadura que durou cinco anos. O segundo e último ditador, Floriano Peixoto, foi um dos presidentes que mais matou gente na história do país. Era um carniceiro. A Primeira República que veio depois, inaugurada por Prudente de Morais, criou o serviço público, começou a sério a industrialização do país, traçou estradas. O que ela nunca fez foi convidar a compartilhar o poder gente pobre e a classe média que ela própria contibuiu para surgir. Era uma República elitista, uma República oligárquica, que caiu por isso mesmo. Caiu pelas mãos de quem queria ter voz.

Aí veio Getúlio. Vamos continuar falando de história?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Esse ano foi muito difícil pro jornalismo brasileiro. Sabe por quê? Porque as pessoas relaxaram. No ano passado estava todo mundo com os dentes trincados, na beirinha da cadeira, num nível só de tensão com o risco que a democracia corria. Aí veio o alívio. Todos os jornais, os sites, todo mundo viu acontecer queda de assinaturas. Para o jornalismo ser possível, a gente precisa de assinantes. Pra gente poder lutar pela democracia sempre, contamos com vocês. Se você pode, se você acha que nosso trabalho é importante, assine o Meio. Se já assina, dê uma assinatura de presente.

Este aqui? Este é o Ponto de Partida.

O brasileiro tem nostalgia por dois períodos ditatoriais. Um é o Estado Novo de Getúlio Vargas, o outro é a Ditadura Militar. De novo, tem gente de esquerda e de direita que gosta de celebrar esses dois tempos. Getúlio, exatamente como aconteceu na Primeira República, era um político autoritário. Ele acreditava em controlar o Brasil de cima. Avançou a indústria, flertou com o fascismo, aí depois se virou pra esquerda. Fez crescer a economia.

Entrou no governo em 1930, só deixou em 45. Quase quinze anos de poder. Na metade final, foi uma ditadura pesada, que fechava jornais, torturava gente nos porões, fazia pessoas desaparecerem. Quando saiu do Poder, já éramos 41 milhões de brasileiros. Desses, 23 milhões analfabetos. Se no final da Primeira República 65% da população não sabia ler ou escrever, ao final da ditadura Vargas esse percentual era de 56%. Uma melhoria ridícula.

A economia cresceu? Cresceu, sim. O dinheiro ficou todo ali no topo. O governo não se preocupava em compreender a pobreza, então não temos estudos, não temos números. Mas era um país de fome e era um país que não se preocupava em construir infraestrutura para distribuir alimento. Então, muitas vezes, comida existia, mas simplesmente ou não chegava, ou não tinha como ser armazenada, onde as pessoas precisavam. No campo, na zona rural, as pessoas eram pobres, muito pobres, terrivelmente pobres. No campo não tinha escola, não tinha saneamento, posto de saúde. As casas eram de pau a pique e paredes de barro jogado. Diarreia era normal, sarampo era normal. Criança pobre, quando sobrevivia à primeira infância, tinha aquelas barrigas grandes, redondas, estufadas com logo em cima as costelas marcadas na pele tão típicas da desnutrição.

Aí veio a Segunda República, a República da Constituição de 1946. Na Primeira República, para votar era preciso ser homem, mulher não podia. Indígenas também não podiam. Era preciso ser alfabetizado. E ter uma renda mínima. Na Segunda República a coisa foi melhor. Todo homem e mulher com mais de 18, e isso incluía indígenas. Mas continuava precisando ser alfabetizado. QUer dizer, mais de metade dos brasileiros não tinham o direito de escolher seu presidente.

O Brasil cresceu até 1964, ergueu mais indústrias, mas a conta de crescer à base de ficar endividando o país terminou onde termina sempre. Inflação, uma inflação que começou pesada no final dos anos 50 e só cedeu em 1994 com o Plano Real. O analfabetismo continuou caindo, e continuou caindo de forma muito lenta. Quando o golpe militar veio, já éramos 76 milhões de brasileiros e 40% de nós não sabiam ler ou escrever. Altíssima concentração de renda. Secas horrorosas no Nordeste, e o êxodo rural começøu pesado, conforme o Sul se urbanizava rapidamente. Foi também um regime muito instável, tentativa de golpe militar a cada quatro, cinco anos. Até que os caras conseguiram.

Aí ditadura é aquela coisa. Foi igualzinho no tempo do Getúlio. Tortura, desaparecimentos, morte, artistas e jornalistas calados. Crescimento junto com hiperinflação. Estado ausente na hora de organizar a urbanização, permitindo que fosse selvagem. Excessivamente presente no controle da economia, não deixando nenhum setor livre para criar, segurando com mão firme o fluxo de dinheiro. Pra quê? Para desembocar em hiperinflação que come todo o crescimento conseguido.

A Nova República resolveu o problema da hiperinflação em dez anos, o do analfabetismo em quinze, com toda criança na escola, universalizou o direito ao voto. Todo brasileiro com mais de 16 anos que quiser votar, vota. Acabou com a fome. Universalizou acesso a saúde. Conseguiu levar médicos a lugares que o Brasil nunca havia conseguido botar acesso a saúde. Distribuiu renda como nunca, jamais, havia acontecido antes. Normalizou a economia, organizou o Estado, criou uma reserva em dólares que permitiu ao país resistir a crises no exterior como nunca havia sido possível antes.

Vamos deixar claro, aqui. Os governos Fernando Henrique e Lula são o que separam o Brasil da Argentina. Nós seríamos a Argentina. Toda a história brasileira, se tivesse seguido os rumos lá que sempre seguimos, nos empurraria para o lugar em que a Argentina está hoje. Dois governos responsáveis com a economia produziram um crescimento imenso e distribuição de riqueza ao mesmo tempo. Lula pôde crescer e distribuir, e fez, porque recebeu a casa organizada. Quando o mundo voltou a crescer, o Brasil fez sua reserva, distribuiu renda e surfou. Estes dois governos são uma preciosidade que tivemos. E isso aconteceu no momento da história em que o Brasil foi democrático como jamais havia sido antes. Em que teve uma Constituição que distribuiu direitos civis como jamais havia feito antes.

A gente não fez o suficiente. A segurança pública nunca deixou o formato da truculência com quem é preto e com quem é pobre do Brasil antigo. Embora tenha havido melhoria na distribuição de renda, ainda somos um país desigual. Embora o acesso de negros, de mulheres, de indígenas a espaços da vida pública tenham aumentado como nunca, ainda estão longe de representar a distribuição da demografia brasileira. A educação foi universalizada, a qualidade da educação não foi. E ainda por cima, a gente pôs a coisa em risco.

Hoje a República brasileira faz 134 anos. É hora de a gente parar com saudosismo do passado, olhar pra frente e entender que temos uma coisa especial nas mãos.

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