O PDT periga derreter
O PDT enfrentou nas últimas semanas duas crises graves e muito diferentes. Uma foi a expulsão do grupo fascista Nova Resistência. É bizarro que eles estivessem lá no meio, a coisa foi muito criticada durante o período eleitoral, mas não parecia incomodar alguém até o dia em que o Departamento de Estado americano escreveu um relatório sobre o grupo no seu radar de ameaças globais. Pois é. A outra crise é abriga de foice dos irmãos Ciro e Cid Gomes pelo controle do partido, no Ceará.
O problema é o seguinte. Poucos partidos brasileiros têm uma lógica interna, representam ideias de Brasil há muito no mapa do debate. A gente esquece muito disso, né? Mas partidos deveriam partir justamente disso, de uma visão para o país. O PSDB foi assim. Representou a um momento o feliz encontro entre o liberalismo progressista e a socialdemocracia que, fosse noutro tempo, certamente teria tanto Rui Barbosa quanto Joaquim Nabuco em suas fileiras. O PDT representa o getulismo, o trabalhismo, um claro projeto de país que vem até de antes de Getúlio. Getúlio pode ter dado ao bicho seu aspecto final, mas já estava ali, ao menos parcialmente, num contemporâneo de Rui e Joaquim, o gaúcho Júlio de Castilhos.
O PSDB derreteu. O PDT, ao menos por enquanto, diz que a briga é só entre Ciro e Cid, envolve o presidente do partido André Figueiredo, mas que os outros diretórios nacionais nada têm a ver com isso. A disputa de espaço fratricida é só uma. Cid quer fazer uma aliança com o PT nas eleições municipais do ano que vem, Ciro é contra.
A coisa tem um quê de bizarra. Afinal, a defesa que Ciro faz é de que José Sarto, o atual prefeito de Fortaleza, possa ser candidato à reeleição. Ele é do PDT. Cid, que é senador e era presidente do partido no estado, é contra. Acha que há mais ganho em sua aproximar do partido de Lula e costurar uma aliança.
Quer dizer, essa coisa de Cid era presidente do partido no estado pode sempre estar errada, tá? Porque ele foi suspenso pelo diretório nacional, mas depois reinstalado por uma liminar da Justiça. Aí, dependendo de quando você assistir a este vídeo, Cid Gomes pode ser ou não presidente do PDT.
É uma loucura que os irmãos Ferreira Gomes estejam metidos nesta briga fratricida. Loucura porque os dois construíram uma coisa que não é pouco relevante. Ciro em particular fez renascer o trabalhismo. O PDT sempre teve, mesmo depois da morte de Leonel Brizola, uma militância aguerrida, combativa, dedicada. Sempre. Mas claramente o partido havia perdido toda sua relevância. Ciro Gomes pôs o PDT de volta ao mapa, nos debates ideológicos, e em 2018 chegou a ter uma votação muito expressiva para presidente da República. Não existe trabalhismo, como ideologia, sem um líder forte. É uma das características deste jeito de fazer política. Ciro era um político em busca dum grupo para liderar, o PDT era um partido em busca de líder forte e aquele encontro deu match como poucos.
Esta briga, neste sentido, é ruim para o partido e para Ciro. Porque pode implodir o PDT do Ceará, que é sua base. E, aí, terminar deixando por vítima a própria viabilidade do partido. Assim como o Brasil perdeu o PSDB, corre o risco de perder o PDT. Os partidos que representam de fato ideias vão se perdendo enquanto siglas como PL e PP e União Brasil, que não representam nada, vão se firmando.
Para a democracia brasileira, é muito ruim.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Um dos assuntos sobre os quais vamos discutir aqui, hoje, é sobre a Nova Resistência. Esse grupelho tem uma ligação ainda pouco compreendida com a Rússia de Vladimir Putin. E isso tem a ver com o PDT, sim, já explico por quê. Mas a defesa de ideias antidemocráticas está tomando caminhos ainda pouco compreendidos. Um deles pode bem ser o TikTok. Sim. E se a China estiver usando o TikTok para, sutilmente, manipular a maneira como jovens compreendem o mundo? É certo que isso ocorre? Não. Mas há indícios crescentes. É o tema sobre o qual vou escrever agora quarta-feira, no Meio Político. Quer entender como funciona? Assina o Meio. ó, quinze reais por mês. Quase nada.
E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Getúlio Vargas misturou muitas ideias, e se inclinou para vários lados nos muitos anos em que governou o Brasil. Neste período, construiu uma ideologia. Nós a chamamos de trabalhismo.
Uma de suas características é o nacionalismo. Existem duas maneiras de compreender o papel de um país. Você pode ser mais permeável ao mundo ou menos. Vender para fora, claro, todo mundo quer. Mas, na sua opinião, facilitar o acesso do mercado interno para estrangeiros ajuda o país a crescer ou tolhe seus movimentos? Isso aí vai depender de como você compreende o mundo. Trabalhistas são certamente nacionalistas, acham que estrangeiros vão sugar as riquezas e nos deixar pouco. Quer ver uma palavra que trabalhistas adoram? Entreguistas. Gente como eu, que acredita que a presença do mundo dentro do Brasil acelera crescimento e traz conhecimento, para eles, é entreguista.
Outra característica dos trabalhistas é a defesa de um governo central forte. José Bonifácio já acreditava nisso lá atrás. O que separava Luzias e Saquaremas, a grande dualidade partidária do Império, era justamente isso. Luzias defendiam mais poder na ponta, nos estados e municípios, enquanto Saquaremas defendiam que sem um governo Central forte, planejando para o futuro a economia e definindo onde colocar os recursos, não seria possível fazer o Brasil crescer. Estas duas visões ainda nos dividem politicamente e os trabalhistas são, neste sentido, herdeiros dos Saquaremas. Um governo Central forte para coordenar, planejar, o futuro do país.
Junte a ideia de governo central forte com nacionalismo e a gente quase desemboca no nacional-desenvolvimentismo, que é a maneira trabalhista de pensar economia.
Tem uma terceira perna no jeito trabalhista de pensar que é esta do líder forte, carismático, no comando. Getúlio era isso. O trabalhismo não funciona se essa figura. É uma ideologia construída para as grandes multidões, para o envolvimento emocional da militância com o partido. A emoção é importante na maneira trabalhista de fazer política, uma emoção ancorada pela figura do líder.
Sabe, não é à toa que Getúlio Vargas flertou com o fascismo. Naquele ambiente dos anos 1930, um jeito de pensar política que fosse nacionalista, defendesse um governo central forte e ancorado por um líder carismático descambava fácil pro fascismo. A Constituição do Estado Novo era fascista, a Lei do Trabalho de Getúlio foi modelada na de Mussolini e dois dos principais ministros, Gustavo Capanema, da Educação e Cultura, e Francisco Campos, da Justiça, vieram do movimento fascista mineiro. Mas, claro, Getúlio cedeu ao ministro antifascista, Oswaldo Aranha, das Relações Exteriores, e terminou por se juntar aos aliados na Segunda Guerra Mundial. Quando a guerra acabou, Getúlio já era claramente o líder de um movimento de esquerda, não de direita.
Só que os elementos estão lá. Nacionalismo, Governo Central forte, líder carismático. E a armadilha do trabalhismo será sempre essa, não permitir que se derreta na direção do fascismo. Figuras como o candidato ao Senado por São Paulo na última eleição, Aldo Rabelo, e a turma da Nova Resistência são mostra desse escorregar, essa sedução que está sempre lá.
O que o Departamento de Estado americano mostrou é que a Nova Resistência tinha site hospedado na Rússia, carregava material de divulgação do governo Vladimir Putin e defendia a ideologia de Alexandr Dugin, um dos caras que inspirou o jeito de Putin ver o mundo. Dugin foi fundador do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Russos. O nome da legenda não é mera coincidência. Ele sequer disfarça a inclinação fascista. A Nova Resistência, ainda por cima, é antissemita. Tudo indica, a serviço do governo russo para divulgar suas ideias.
Pois bem, depois de anos de queixas inclusive por parte de militantes históricos, foram expulsos. Seria um processo de limpeza interna do PDT, ancorando-se em definitivo na esquerda e dentre as forças claramente democráticas. O Brasil precisa de partidos com visão de país e trabalhando dentro do jogo democrático. O PDT é uma voz importante.
Sem mandato, Ciro está circulando pelo Brasil dando palestras e trabalhando as redes sociais para caçar assinantes para sua newsletter. É isso mesmo. Precisa sobreviver e a gente faz isso trabalhando. Para um líder político, nada mais honesto. Viver de divulgar suas ideias.
O que trai é seu temperamento. Com o irmão, não é diferente. Claro que a disputa pelo parceiro ideal no Ceará, se o PT de Camilo Santana ou o PSDB de Tasso Jereissati, deve ser mesmo muito relevante. Mas que não consigam se entender sobre um debate desses, cá entre nós, é inacreditável.
Ao longo dos anos, com sua participação nas redes sociais e através de seu livro, Ciro Gomes realmente construiu um movimento, criou militância, converteu gente para o movimento trabalhista. Fez isso contando histórias. Fez isso falando, explicando, seduzindo. Isso não é pouco. Não é trivial. Construir um movimento político não é todo mundo que consegue fazer. Ele conseguiu. Mas é um líder que gosta de brigar, que não gosta de ceder, e o temperamento do irmão caçula é igual.
A briga dos dois periga levar à destruição, ou no mínimo à diminuição, do PDT do Ceará. Isto faz com que a liderança de Ciro definhe. Sem líder forte, o trabalhismo não fica em pé. O PDT não fica.
Não é preciso gostar das ideias para saber que, no cenário político brasileiro, isto é ruim.