Israel x Hamas e a guerra com nossos pares ideológicos
A guerra entre Israel e Hamas está completando um mês. É uma tragédia.
Desde 7 de outubro, quando membros do Hamas promoveram aquela selvageria inominável, e a cada dia a partir dali, com a reação absolutamente desumana do governo israelense, esse nó aqui se instala quando se navega nas redes sociais e nos portais de notícia.
O nó é de dor. Mas tem um outro sentimento junto.
É uma coisa muito doida, mas nesse mundo hiperconectado há uma sensação de imensa solidão.
Isso porque toda vez que eu cogitei compartilhar qualquer uma das minhas percepções dessa guerra eu automaticamente me contive. E me recolhi. Com medo.
Medo de que? Bom, minhas percepções são nuançadas, variam, têm altos e baixos, têm ressalvas. E no mundo atual isso é muito condenável.
Eu queria falar nas redes da profunda tristeza que eu sinto ao ver cada uma daquelas cenas de crianças sendo massacradas em Gaza. Aquilo me rasga, como deve machucar a muitos de vocês.
Mas eu não quero fazer isso aderindo ao canto “Do Rio ao Mar”, que pressupõe a eliminação de Israel do mapa. E ao aventar essa nuance sei que boa parte da esquerda não toleraria meu depoimento.
Eu queria falar como só de imaginar o que é ter um parente — quanto mais crianças ou idosos — sequestrados por um mês por um grupo terrorista que teve a frieza de exterminar outros tantos idosos e crianças com absurda crueldade no dia 7, eu tenho vontade de deitar em posição fetal na minha cama.
Mas eu não quero fazer isso aderindo a uma política que foi tomando territórios palestinos e condenando uma população inteira ao status de refugiados em sua própria terra. Só que essa ressalva me colocaria imediatamente numa categoria de antissemita para parte da direita.
Não há como se horrorizar com a barbárie do dia 7 de outubro e relativizar que a reação com bombardeios a locais de onde a população civil não saiu é indefensável.
Não há como apoiar a causa palestina e aturar, ao mesmo tempo, a imagem de ativistas arrancando os cartazes dos sequestrados israelenses das paredes.
Mas é isso que é esperado em termos de posicionamento hoje. Ele tem de ser integral. Não pode questionar nada. E quem foge desse script é defenestrado por seu próprio grupo ideológico.
Porque, cá entre nós, a gente vive uma outra guerra, né? A do meu “bem” contra o seu “mal”, em que não há espaço algum pra sombra, pra ponderações. Ela está turbinada pelo conflito Israel e Palestina. Mas está também no papo da privatização da Enel e da Sabesp. Da prova do Enem.
Ela é também uma guerra de egos. Ninguém vai às redes ou às manifestações físicas pra fazer só política — aquela que presume debate e diálogo. Vai pra exibir o que acredita ser um conjunto irretocável de virtudes. E angariar engajamento a partir disso.
Se é essa a premissa, a de que um posicionamento é virtuoso necessariamente em detrimento dos demais, qualquer possibilidade de argumentação e lógica fica anulada. Automaticamente.
E a gente fica fadado a esse diálogo de surdos, de cancelamentos, de solidão — a não ser que se ceda à pressão do pertencimento pela radicalização.
Eu já vinha buscando elaborar isso tudo e hoje, ao conversar com o professor Pablo Ortellado, que estuda guerras culturais e polarização política, a coisa ficou mais clara pra mim. Eu o entrevistei pro Meio Político, que é nossa newsletter das quartas-feiras, pra assinantes premium. Se quiser ler o papo completo com ele, assine o Meio. São só 15 reais por mês.
Uma pergunta pra começo de conversa. Por que se preocupar em postar nas redes tudo de qualquer assunto? O mundo já tem tanta opinião, né?
Eu poderia simplesmente ficar quieta, guardar pra mim, e aí esse vídeo aqui sequer existiria, porque eu não teria de pensar se minha opinião é válida, se vai ser bem aceita, se vai ser cancelada…
Verdade.
Acontece que, com cada vez mais raras exceções de quem optou por viver fora das redes sociais e consegue fazer isso, é nelas que se dá nosso convívio hoje. Nossa existência cidadã e política. Social, enfim.
E eu sou um ser social. Por ofício e por temperamento.
Pois bem. Como ser social, quero dividir minhas alegrias, minhas angústias e minhas convicções.
Quero, também, ser aceita e pertencer.
E, idealmente, mais que isso, ser admirada.
É por esse ciclo, um tanto narcísico e alimentado pela maneira que os algoritmos das redes funcionam, que passa nossa formação de ideias hoje. E ele está aniquilando qualquer chance de nuances nessas ideias.
Esse fenômeno já é bem estudado e documentado faz um tempo. Mas eu acho que ele nunca foi tão concreto quanto nessa guerra de Israel contra o Hamas e, em última instância, contra a Palestina.
Só de elaborar essa frase eu já temi pelo menos dois tipos de represália. Mas vamos em frente.
Primeiro: todo mundo se sente instado a imediatamente tomar um partido, porque ficar calado é também tomar partido, o dos isentões, que é a subraça humana.
Segundo: esse posicionamento não pode conter um “mas”, “por outro lado”, “se bem que”. Se você está conosco, não pode dar palanque pros adversários, pros inimigos. E fazer ressalvas é nada mais que isso. Legitimar o outro lado.
Terceiro: só há, sim, um lado certo. O bem. Qualquer hesitação nesse sentido é, claro, dar palanque pro mal.
Você certamente sabe do que eu estou falando e eu sequer preciso saber de que lado você está pra ter certeza de que já testemunhou essa dinâmica.
E eu não estou aqui pra fazer uma defesa dos isentões. Ou do centro. É dentro dos campos ideológicos mesmo que tá faltando nuance.
Ninguém precisa abrir mão da ideologia da esquerda pra poder pedir que, pelo mínimo do bom senso, não se admita uma defesa do Hamas, um grupo terrorista teocrático, anti-mulheres, opressor, nas manifestações pró-Palestina.
E alguém de direita pode seguir sendo de direita e não achar aceitável que o argumento “ah, eles usam civis como escudo humano” seja suficiente pra justificar que se exterminem os escudos humanos, entre eles milhares de crianças, sem qualquer cerimônia.
Dá pra enxergar como isso nem de longe é ser isentão ou de centro?
Mas e se fosse, também?
Bom, o fato é que estamos condenados, dentro de nossos próprios grupos ideológicos, a ficarmos restritos à polarização mesmo.
A não podermos erguer um decibel sequer de autocrítica, sob o risco de alimentarmos o inimigo.
Agora, uma ideia radical: um certo grau de razoabilidade também pode ser contagioso.
Ao propor debates internos em nosso campo ideológico, a gente talvez fomente o debate mais amplamente.
Se a gente perder o medo de fazer as perguntas pros nossos pares e for acolhido na dúvida, na ponderação, nosso grupo se fortalece, não se enfraquece.
Essa é uma aposta. Porque do jeito que está se fazendo até aqui, de posições estáticas, impermeáveis, não tá dando certo, né?
A guerra cultural ganhou esse nome porque, evidentemente, é feroz e opõe campos distintos de visão de mundo.
Eles passam por quem é o oprimido e quem oprime, quem é poderoso e quem é subalterno socialmente.
E acabou encontrando um terreno fértil na seara dos costumes, opondo os progressistas e os conservadores.
A gente está muito longe de encerrar a guerra cultural. Mas não precisa importá-la, com tanta animosidade, pra dentro dos respectivos campos.
É possível conversar dentro da esquerda sobre como defender os oprimidos sem aderir cegamente a terroristas? Tem que ser!
É possível conversar na direita sobre como Israel pode se defender sem exterminar um povo inteiro? É urgente que sim.
Tem de ser possível a esquerda admitir que uma pergunta do Enem sobre camponeses “cercados” absolutamente desconsidera os méritos do agronegócio moderno, aquele exemplar desenvolvimento da Embrapa, por exemplo.
É melhor que seja, porque esse desenvolvimento existe e sustenta boa parte da economia do país.
Também tem de ser possível a direita olhar para seu umbigo e admitir também que uma parte expressiva do agro explora pessoas e recursos de forma irresponsável e os estudantes do Brasil precisam estar em contato com essa realidade.
É melhor que seja, porque esses estudantes podem ajudar a modernizar a fatia do agro que é casada com o atraso e fazê-la, inclusive, faturar mais.
Dispor-se a fazer as perguntas difíceis, internamente em cada campo ideológico, vai exigir que cada um que tem o desejo de se engajar o faça com uma dose menor de narcisismo, de anseio pelo like e pela aceitação dos nossos iguais, e com uma dose bem maior de coragem.
É isso que pode salvar nossa democracia. Nossa sociedade.