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A surpresa de Milei na Argentina

Tem coisas que só acontecem na Argentina. Quem poderia imaginar que o ministro da Fazenda que gerencia uma inflação anualizada de 138% em setembro, que deixou 40% da população na pobreza, chegaria em primeiro na briga do segundo turno? Como foi que Sergio Massa chegou em primeiro? E quão parecido com Bolsonaro é Javier Milei? Vem comigo.

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Olá, sou Pedro Doria, editor do Meio. Tem coisas que só acontecem na Argentina. Quem poderia imaginar que o ministro da Fazenda que gerencia uma inflação anualizada de 138% em setembro, que deixou 40% da população na pobreza, chegaria em primeiro na briga do segundo turno? Como foi que Sergio Massa chegou em primeiro? E quão parecido com Bolsonaro é Javier Milei? O PdP já está no YT do Meio ou na sua plataforma favorita de podcasts.

Tem coisas que só acontecem na Argentina. Quem poderia imaginar que o ministro da Fazenda que gerencia uma inflação anualizada de 138% em setembro, que deixou 40% da população na pobreza, chegaria em primeiro na briga do segundo turno?

Pois é. Aconteceu. Olha, o grupo Atlas, brasileiro, já previa isso em suas pesquisas desde a semana passada. Isso tem sido comum, aliás. A Atlas tem acertado. Sergio Massa e Javier Milei vão para o segundo turno. Todo mundo esperava que o candidato libertário, Milei, estivessem em primeiro. Não está, ficou para trás, com quase 30% dos votos. Massa chegou em primeiro com 36,7%. Falta um mês para a eleição, que vai ser no dia 19 de novembro. E será uma briga duríssima.

A primeira coisa a ter em mente é o seguinte. Em terceiro lugar ficou Patricia Bullrich, enconstando nos 24% dos votos. Ela representa o grupo político do ex-presidente Maurício Macri. É muito difícil imaginar seus eleitores votando em Massa. Vamos deixar claro o que isso quer dizer. 54% dos argentinos votaram contra o governo. Massa teve 4 milhões de votos menos do que o atual presidente, Alberto Fernández. Ou seja, tem uma ladeira íngreme para subir.

Isto não quer dizer que ele não tenha popntos positivos com os quais contar. Saiu como candidato quando todo mundo já o via previamente derrotado. Desta condição, spare nesta segunda volta em primeiro. Não é não é pouco. E, como todo mundo esperava Milei nesse lugar, para ele não é bom começar com ar de derrotado. Principalmente, não é bom para Milei começar essa briga com seu ar de inderrotável desmontado por completo. Uma coisa todo mundo já sabe, ele não é inevitável.

A campanha de Milei, de acordo com os analistas argentinos, cometeu dois erros importantes. O primeiro foi embarcar na coisa bolsonarista de livre acesso a armas. No Brasil, as cidades médias e os espaços rurais são muito representativos eleitoralmente. Nestes ambientes, a cultura de ter arma em casa é mais disseminada e, em muitos casos, não sem razão. Metade da população argentina vive na Grande Buenos Aires. Mais de 90% da população do país é urbana. É, neste sentido, uma nação muito diferente do Brasil. E, nas redes argentinas, os episódios brasileiros de matança em escolas estão repercutindo muito. Para o argentino médio, facilitar acesso a arma é uma ideia desastrosa.

Isso é importante. Na percepção do Andrei Roman, CEO da Atlas Inteligência, Bolsonaro tira votos de Milei. Ele não é bem visto entre os argentinos, mesmo os de direita. E, não, Lula também não traz votos. É visto como corrupto pelos argentinos.

Agora, Milei cometeu outro erro que não tem nada a ver com Bolsonaro. Ele atacou o papa. O papa argentino. Acusa Francisco de acobertar ditaduras comunistas, por exemplo. Na quarta-feira passada, chegou ao ponto de lançar a ideia de romper relações diplomáticas com o Vaticano. Mais de 70% da população argentina é católica. No Brasil, esse percentual é de 50%. E os argentinos levam religião mais a sério do que nós. Milei voltou atrás, tá? Afirmou que não há possibilidade de romper com o Vaticano, mas ele não escapa de precisar moderar o discurso para atrair o centro.

Todo o trabalho que ele fez, com discurso contra aborto, contra legalização de drogas, para atrair esse público religioso conservador foi meio que jogado fora com o tiro no pé da briga com o papa. Mas a crise econômica e social está nas mãos dos governistas. Como é que a coisa vai andar nas próximas semanas? A gente vai ter de esperar pra descobrir. Mas tem um ponto essencial para nós brasileiros. O que é, ideologicamente, Javier Milei? Ele é um Bolsonaro argentino? Vem comigo.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Para compreender a surpresa eleitoral argentina, nós fomos buscar um dos maiores especialistas em democracia no mundo. Steven Levitsky, professor de Harvard, um dos dois autores de Como as Democracias Morrem. Levitsky é também um cientista político especializado em Amércia Latina. Então o que está acontecendo? Os assinantes premium do Meio vão receber essa edição do Meio Político com exclusividade. Vai estar no site e vai para o email. Quer ler o Levitsky? A assinatura custa bem menos do que aquele drink bacana que você bebeu no fim de semana.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Mas quem é Javier Milei? Para além da coisa histriônica, o que ele representa ideologicamente? O quanto se aproxima de figuras como Donald Trump, como Jair Bolsonaro?

Milei se apresenta como um libertário. Aí toda aquela turma MBL, Partido Novo, está se derretendo. Mas libertários não são a mesma coisa que liberais. Tanto liberais quanto libertários olham para o mundo por um mesmo prisma, o de que a autonomia de cada pessoa, as liberdades que Constituições democráticas nos garantem, são o epicentro de uma sociedade justa. A gente começa pelo instante em que cada pessoa é livre para ser, sentir e viver a experiência de ser quem se é. Agora, liberais e libertários partem do mesmo ponto mas, daí em diante, pensam de formas bastante diferentes.

Começa com o papel do governo. Liberais acreditam que o governo tem um papel fundamental, que é o de gerenciar o atrito entre o exercício da liberdade individual e os direitos coletivos. Você não pode jogar lixo no rio porque vai ser bom pra sua fábrica. Assim você vai prejudicar a comunidade. O coletivo. Liberais querem um Estado preocupado com o bem-estar coletivo. Libertários, não. Acreditam que o papel do governo deve ser bastante pequeno. Impedir violência, garantir segurança, proteger a propriedade privada, e não se meter na economia. Libertários partem da ideia de que o mercado se torna eficiente e equilibrado se o governo não tocar ali.

Enquanto liberais vão sempre considerar o princípio do dano, a ideia de que direitos individuais podem ser restringidos caso haja dano para outros, libertários tratam estes direitos como invioláveis. Direitos individuais e econômicos, para libertários, não devem ser mexidos se não em momentos muito específicos. Para os mais radicais, nem isso.

A partir daí, entra a distinção a respeito de Justiça social. Liberais são muito preocupados com a garantia de que as oportunidades que cada pessoa tem sejam o mais parecidas quanto possível. A chegada pode ser diferente, mas precisamos partir todos do mesmo lugar. Então garantia de que, por exemplo, todos tenham acesso a educação de qualidade, mesmo que isso exija uma presença maior do Estado, para um liberal é princípio básico. A ideia de que não exista fome, que dignidade seja garantida, igual. Libertários vão resistir. Desigualdade aguda numa sociedade, para um libertário, não é algo em que governos deveriam se meter.

No fim, a ideia de uma Democracia liberal é que ela proteja liberdades individuais e tenha como meta a promoção de progresso scoial. É assim que um liberal vê. O libertário é cético em relação à democracia. Ele tem problemas particulares com regulações e impostos, que são o jeito de o Estado poder promover aquele progresso.

Agora, vejam, o Milei não é um libertário puro. O discurso libertário puro não ganha eleição. Imagina. O candidato chega, fala que a partir de agora é cada um por si. Não atrai voto. Então, desde os anos 1990, a partir dos Estados Unidos, começou uma aproximação entre libertários e a direita populista. O professor Pablo Ortellado, da USP, estuda bem, isso, já escreveu um bocado sobre o assunto.

As ideias bem libertárias estão lá. Acabar com o Banco Central, acabar com o Estado de Bem-Estar Social. Mas junto entra um discurso bastante moralista sobre família, sobre religião. De repente a corrupção de um casta que controla o Estado se torna proeminente no discurso. Nessa, temas que seriam estranhos a um libertário entraram no vocabulário político de Milei. A campanha é contra, por exemplo, a legalização de drogas. Libertários achariam que o Estado não tem de se meter nisso, é decisão de cada um o que consumir. A campanha dele também fala de restabelecimento do serviço militar obrigatório, que a Argentina aboliu após a ditadura. A ideia é que sem prestar serviço os homens se enfraquecem e o país se priva de sua capacidade de defesa. Isso é muito anti-libertário, puro suco de populismo reacionário.

Vai além. Milei criticou o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, quando ele celebrou o Dia da Luta contra a Discriminação. Larreta é um liberal. Antiperonista. Para Milei, esse papo de combate a discriminação, vocês já devem imaginar, é “marxismo cultural”. Onde será que a gente já ouviu isso antes?

Pois é. Bolsonaro é um reacionário que se aproximou de libertários para construir essa fusão entre libertarianismo e reacionarismo, no Brasil. Milei seguiu o caminho contrário. De libertário, se aproximou dos reacionários. A ordem dos fatores altera o produto, tá? Bolsonaro nunca deu corda, de fato, para Paulo Guedes. Milei é economista. Isso quer dizer que a tendência dele é, sim, tentar diminuir o Estado argentino.

Agora, diminuir como? Essa é a pergunta chave. A Argentina tem um Estado muito presente. Maurício Macri, que é liberal e não libertário, se elegeu prometendo dar uma aparada. Não conseguiu avançar muito. O Estado argentino toca, com algum subsídio, com algum benefício, em todos os setores da sociedade. E todo mundo, claro, quer que se mexa no do outro, mas não no seu. A Argentina não tem reservas em dólar, como o Brasil. Ao contráro. Tem dívidas em dólar. Se no Brasil até o PT quando chega ao governo fala em responsabilidade fiscal, quer dizer, em ter um Estado que paga por aquilo que gasta, na Argentina não tem isso. O Estado gasta bem mais do recebe. Não deveria ser surpresa que vive com hiperinflação.

Então aumentar arrecadação ou diminuir os gastos ou alguma média entre estes dois é inevitável. E ninguém vai gostar. Mas eleger um Bolsonaro que promete um choque não vai funcionar. Se ele fizer o choque, os argentinos vão derrubá-lo. Argentinos derrubam presidentes com muito mais facilidade que brasileiros. E resistem a choques econômicos também muito mais do que nós. E, bem, um governo direito precisa atender à crise da pobreza ao mesmo tempo em que tenta ajustar as contas.

Como a Argentina sai desse buraco? É difícil responder, viu?

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